Pesquisadores acreditam que se continuarmos em processo de degradação progressivo, o bioma pode chegar a um ponto irreversível.
Dos Andes ao Atlântico, a floresta amazônica se espalha por 7,5 milhões de km² abraçando oito países latino-americanos e o território da Guiana Francesa. Até 2018, segundo dados mais recentes, 14% de sua cobertura florestal tinha sido perdida. Os cientistas acreditam que se o desmatamento alcançar entre 20% e 25%, o equilíbrio ambiental no ecossistema amazônico pode atingir o chamado ponto de inflexão, ou tipping point, sendo irreversivelmente alterado, levando a um processo de degradação progressivo que poderá ter efeitos sobre a temperatura do planeta e alterar o regime de chuvas no centro-sul do Brasil.
O resultado das urnas em outubro vai definir como o poder público tratará a floresta. “Os próximos quatro anos serão totalmente decisivos. Uma das mensagens principais do Painel Científico para a Amazônia foi a moratória do desmatamento, degradação e fogo em todo o sul da Amazônia, moratória imediata, o que quer dizer que tem que zerar o desmatamento em toda a Amazônia antes de 2030, que é o ano do compromisso que os países assumiram na COP-26”, afirma o climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo) e co-presidente do Painel.
Como uma organização jornalística sem fins lucrativos, dependemos de seu apoio para financiar o jornalismo que cobre assuntos marginalizados em todo o mundo. Doe qualquer quantia hoje para se tornar um Campeão Pulitzer Center e receba benefícios exclusivos!
O pesquisador explica que se o desmatamento e o aquecimento do planeta continuarem no ritmo atual, toda a porção sul da Amazônia –desde o Atlântico e o sul do Pará, até o Acre e a Bolívia — poderão cruzar o limiar a partir do qual o avanço da degradação, das temperaturas e das secas se retroalimentam, que é chamado de ponto de inflexão ou não retorno.
“O nome de não retorno é porque se passar desse ponto, a floresta vai se degradando e mesmo se a gente conseguisse interromper o desmatamento, vira um processo de auto desaparecimento da floresta e não para mais”
Carlos Nobre
Climatologista e co-presidente do Painel Científico para a Amazônia.
O Brasil abriga pouco mais da metade da Amazônia e já perdeu 18% da cobertura florestal do bioma. A devastação tem se acelerado e, em 2021, alcançou os maiores índices dos últimos 14 anos, superando as taxas de 2008, com mais de 13 mil km² desmatados, área oito vezes maior que a da cidade de São Paulo.
“Nós não revertemos ou não zeramos a taxa de desmatamento. Simplesmente em um ano a gente acelera e no outro ano a gente reduz, mas a gente não acaba. O que significa que o abismo está chegando, ora um ano mais lento, ora a gente está indo em direção a ele de forma mais rápida”, afirma o pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) Paulo Moutinho.
E o que isso tem a ver com o ciclo eleitoral? Se o regramento socioambiental é flexibilizado e os instrumentos de comando e controle são desestruturados, crescem os índices de devastação. Como o governo e os congressistas conduzem as políticas públicas definem a política socioambiental.
A destruição da floresta chegou a ser reduzida em 83% entre 2004 e 2012, mas voltou a subir com o enfraquecimento do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). O programa perdeu importância administrativa no governo federal a partir de 2013, sendo transferido da Casa Civil, órgão central na coordenação do Executivo, para o Ministério do Meio Ambiente.
Além disso, as ações de combate ao desmatamento passaram a receber menos dinheiro. O Ibama perdeu 42% do seu orçamento para fiscalização ambiental entre 2013 e 2016 e teve o número de fiscais reduzido em 15%, de acordo com relatório da CGU (Controladoria-Geral da União). Com o início do governo Bolsonaro, em 2019 o PPCDAm foi paralisado e posteriormente substituído pelo Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa.
“O governo Bolsonaro optou pela destruição da política ambiental e das ações e dos direitos socioambientais. Não só a parte ambiental, mas a parte indígena, a parte agrária, tudo isso está destruído em termos organizacionais e termos dos regramentos internos do Executivo”, explica Suely Araújo, urbanista e advogada, doutora em ciência política, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018).
Nos últimos anos, a destruição da floresta cresceu mais sobre áreas públicas do que em propriedades particulares, indicando uma mudança no perfil do desmatamento. E sua explicação está nas leis e condução de políticas públicas.
O novo Código Florestal, de 2012, isentou de punição desmatamentos ilegais anteriores a junho de 2008. Em 2017, uma medida provisória aprovada no Congresso permitiu legalizar terras públicas ocupadas na Amazônia até 2008. Dois anos depois, uma nova medida provisória propôs legalizar ocupações feitas até 2014, mas terminou por perder a validade sem ser votada diante da repercussão do tema.
Entre 2017 e 2020, segundo estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), foram feitas sete mudanças na legislação fundiária federal e dos estados da região amazônica com o objetivo de regularizar ocupações de terras públicas antes consideradas ilegais, em muitos casos com o desmatamento das áreas para comprovar sua ocupação.
Estudo do Ipam mostra que:
- Entre 2019 e 2021: terras públicas concentraram 51% de todo o desmatamento na Amazônia brasileira
- Entre 2016 e 2018: terras públicas concentraram 44% do desmatamento.
- O uso para pecuária foi a principal destinação do solo em 75% das áreas desmatadas das florestas públicas não destinadas, segundo dados do Ipam para o ano de 2020.
Ainda sobre o estudo, o Ipam indica na comparação entre os dois períodos o desmatamento avançou 56%, indo de uma média anual de 6.970 km² para 10.913km². As terras públicas tiveram uma aceleração no desmatamento de 79%, passando de 3.106 km² entre 2016 e 2018 para uma média anual de 5.550 km² entre 2019 e 2021.
Em resposta ao JOTA, o Ministério do Meio Ambiente informou, em nota, que “o governo federal tem agido de maneira extremamente contundente na proteção ao meio ambiente e no combate aos crimes ambientais”, diz o texto.
A pasta destacou a operação Guardiões do Bioma, realizada conjuntamente com o Ministério da Justiça e órgãos ambientais, além da destinação de verba suplementar de R$ 270 milhões ao Ministério do Meio Ambiente e a contratação de 739 servidores para o Ibama e o ICMBio, representando um aumento de 18% do efetivo. Ainda de acordo com o governo, foram contratados 3.185 brigadistas para atuar na prevenção e combate a incêndios florestais em todo o Brasil.
LEGISLATIVO
Como estão as pautas do Congresso que podem impactar a Amazônia
Entre maio do ano passado e fevereiro deste ano a Câmara dos Deputados aprovou projetos que mudam as regras de licenciamento ambiental (PL 3729/2004), de regularização fundiária (PL 2633/2020) e de liberação de agrotóxicos (PL 6299/2002). Também avançou na tramitação do projeto que transfere do governo federal para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas (PL 490/2007).
Um quinto projeto de teor polêmico apresentado pelo governo Bolsonaro em 2020 caminhou na Câmara. O PL 191/2020, que permite a mineração em terras indígenas, teve em março um requerimento de urgência aprovado. Isso significa que ele consegue pular etapas e ser apreciado diretamente pelo plenário da Casa.
Os parlamentares ambientalistas chamam o conjunto de propostas de “pacote da destruição”. O JOTA analisou as votações e constatou que as propostas obtiveram votação favorável da maioria da bancada de 91 deputados federais dos nove estados que compõem a Amazônia Legal.
Foi o caso da aprovação do requerimento para tramitação em urgência do projeto que permite a mineração em terras indígenas (PL 191/2020), assim como dos projetos que flexibilizam o licenciamento ambiental (PL 3729/2004), a regularização fundiária (PL 2633/2020) e a liberação de agrotóxicos (PL 6299/2002). Clicando nos links sobre o número dos projetos é possível conferir como votou cada deputado.
Para os parlamentares ambientalistas, os projetos enfraquecem os controles do licenciamento ambiental, incentivam o desmatamento ao regularizar invasões a terras públicas, reduzem a segurança na aprovação de agrotóxicos e retiram direitos dos povos indígenas e da proteção a suas terras.
Já os defensores das propostas argumentam que elas modernizam a legislação e garantem maior segurança a investimentos, promovendo a geração de empregos. Também sustentam que com a regularização fundiária, as proposituras, se aprovadas, tornariam a responsabilização pelo desmatamento ilegal mais fácil. Os projetos listam entre as prioridades do governo Bolsonaro e da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne representantes de uma das bancadas mais organizadas e com maior poder de mobilização no Congresso, a dos ruralistas.
“O Congresso Nacional é uma Casa de minorias. A bancada ruralista é uma minoria. Nós nos organizamos para votar as nossas pautas e ter a maioria. Mas por mais que nós sejamos uma grande bancada, talvez sejamos uma das maiores do Congresso Nacional, nem sempre a gente consegue avançar na velocidade que a gente quer, e a gente tem noção daquilo que pode avançar e o momento”, afirma o deputado federal Sérgio Souza (MDB-PR), presidente da FPA.
Lideranças do agronegócio costumam reforçar o discurso a favor da preservação da Amazônia. O presidente da FPA afirma que o setor não vê a floresta como uma área de expansão agrícola e que seria possível aproveitar melhor terras já degradadas aumentando a produtividade nesses terrenos.
“O Brasil tem condições de cumprir o que a ONU espera do Brasil, que é dobrar a produção de alimentos até 2050, sem suprimir uma árvore sequer de maneira ilegal”, afirma Souza. “A gente tem que olhar para a Amazônia como um patrimônio nacional da biodiversidade, da regulação climática, da produção de águas, de regimes hidrológicos, a gente tem que olhar a Amazônia assim com uma importância diferenciada”, continua o deputado.
A proximidade do período eleitoral desacelerou a tramitação das propostas e hoje não há perspectiva de os textos serem votados antes das eleições. Nenhum parlamentar que tenta a reeleição quer ser associado a pautas polêmicas e prejudicar seu desempenho nas urnas.
Correlação de forças no Congresso
Em uma Casa legislativa é preciso articular votos para aprovar ou frear propostas. Para o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), um dos coordenadores da Frente Parlamentar Ambientalista, a bancada em geral consegue no máximo de 140 a 170 votos em suas pautas. Dessa forma, não tem sido possível aprovar projetos para fortalecer a fiscalização ou barrar proposições que flexibilizam os marcos legais de proteção.
A bancada ambientalista acredita que no próximo ciclo de quatro anos não terá muita renovação no perfil de centro-direita do Parlamento atual.
“Eu acho que vai ficar muito mais complicado internamente, eu não acho que vai melhorar [no Congresso]”, diz Agostinho. “Acho que vai melhorar a orientação do governo, que vai ser mais progressista. O governo sempre exerce papel importantíssimo na aprovação das matérias, mas do ponto de vista interno do Parlamento, acho que a gente vai ter mais parlamentares contra o meio ambiente do que a favor”, diz o líder ambientalista.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), também tem projetado uma renovação menor do Congresso nas eleições deste ano, com a manutenção do perfil de centro-direita do Parlamento.
Se o equilíbrio de forças não deve ser alterado de forma relevante na próxima legislatura, a mudança no direcionamento da Câmara em relação a pautas ambientais dependerá principalmente da orientação do Poder Executivo. O governo costuma ter certa influência sobre o Legislativo. Também é preciso observar quem ocupará as presidências de Câmara e Senado, que definem a pauta e detalhes sobre a tramitação dos projetos.
O enfraquecimento do presidente também é uma peça da equação. A ex-ministra do Meio Ambiente e candidata a deputada federal Marina Silva (Rede) afirma que as regras ambientais costumam ser apresentadas à mesa de negociação entre grupos políticos que desejam sua flexibilização e governos que precisam de apoio no Parlamento.
“O Congresso tem muito poder, tem muita força, e, nós sabemos, quando acontece qualquer situação de instabilidade política, qualquer situação de desconforto para os governos em relação a projetos na área econômica, a primeira moeda de troca que entra em cena é a da agenda ambiental”, diz a ex-ministra. “Essa eleição é um marco histórico de muitas responsabilidades incidindo sobre questões de altíssima relevância para a sociedade brasileira e para o futuro do Brasil. No caso da questão ambiental, especificamente da Amazônia, ela é crucial”, conclui.
Outro fator de influência, apontado por unanimidade por políticos de diferentes inclinações ideológicas, é a pressão da mobilização social a favor do meio ambiente. A década de 1990 apresentou picos preocupantes de desmatamento – com especial destaque ao ano de 1995 – e a opinião pública, pressionada pelas ideias difundidas pela Eco 92, teve papel importante para aprovação da lei de crimes ambientais naquela década (Lei 9605/98).
PRESIDENCIÁVEIS
Candidatos defendem preservação, mas divergem sobre políticas para a Amazônia
Entre os principais candidatos à Presidência, nenhum deixa de ressaltar em seu plano de governo a importância da conservação da Amazônia e do combate ao desmatamento. As diferenças estão na ênfase dada às políticas escolhidas para alcançar esse objetivo, bem como na atuação histórica de cada um em relação ao tema.
A reportagem do JOTA separou as principais propostas e linhas de atuação para a Amazônia e o meio ambiente dos quatro candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto: Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Jair Bolsonaro (PL), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). Confira o detalhamentos das propostas e a análise completa de especialistas.
Embora a importância da preservação da floresta esteja documentada nos planos de governo, o professor Francisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA (Universidade Federal do Pará), critica a pouca ênfase que os candidatos dão à urgência de se interromper o ciclo do desmatamento.
“Há uma consciência política, eu vejo isso no Lula, no PT, o Ciro tem uma consciência clara de que a questão ambiental é fundamental, mas eles em geral se aproximam da questão com um monte de preconceitos, elementos interpretativos que são cheios de armadilhas”, afirma Costa, que não se mostra otimista com um eventual futuro governo Bolsonaro.
Para o pesquisador da UFPA, o mecanismo que leva ao desmatamento vem da combinação da oferta de terras baratas, em parte pela regularização fundiária de terras públicas, com a visão econômica tradicional de produção da agricultura e pecuária.
Costa afirma que é o baixo preço da terra que permite seu uso para atividades como a pecuária extensiva. “No fundo está a forma como a terra foi apropriada no passado e o modo como o mercado de terras, operando autonomamente, garante a produção de terra barata para atividades extensivas”, ele afirma.
O pesquisador afirma que o caminho para o desenvolvimento econômico sustentável das populações da Amazônia está na bioeconomia, em cadeias produtivas que utilizam matérias primas da floresta de forma sustentável. Um exemplo mais conhecido é o açaí, mas estudo coordenado por Costa mapeou 30 cadeias de valor de produtos da sociobiodiversidade no Pará que, em 2019, geraram uma renda total de R$ 5,4 bilhões e cerca de 224 mil empregos.
O professor Pedro Jacobi, do Instituto de Energia e Ambiente da USP (Universidade de São Paulo), concorda que o foco do mandato presidencial que se inicia no próximo ano deve estar no controle do desmatamento e no incentivo à bioeconomia.
“A Amazônia está num olhar internacional e isso pesa muito, então a questão central é efetivamente a redução do desmatamento, o controle muito mais efetivo para reduzir o desmatamento, a punição aos responsáveis, as multas ambientais”, diz Jacobi.
Todo início de governo é influenciado por uma situação que em ciência política que é chamada de lua de mel. O governo e os parlamentares acabaram de ser eleitos. “Você ainda não está contestando, você acabou de receber o mandato para fazer aquilo”, diz a pesquisadora Suely Araújo. Principalmente para o Executivo, o início de mandato é um período em que essa força influencia a capacidade do governo conseguir aprovar pautas no Congresso Nacional.
“Grande parte da bancada ruralista pula de barco rapidinho. Se o governo do PT é eleito, todo mundo vira petista. Claro que não são todos, mas grande parte vai pular para o barco do governo porque é um setor que depende das benesses do Executivo. O nosso agro precisa de muito subsídio, ele depende do dinheiro público e pede perdão de dívida toda hora. Então, ele precisa estar próximo do governo.”
Suely Araújo
Especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima
Outro fator que vai influenciar o direcionamento do governo e dos parlamentares é a pressão da opinião pública, sobretudo internacional, que sempre teve forte influência na evolução da legislação socioambiental.
Nos maiores picos de desmatamento ocorridos na década de 1990 e início de 2000, o então presidente Fernando Henrique Cardoso era fortemente pressionado e atuava diretamente para que sua postura não fosse associada à degradação. É o oposto do que acontece com Bolsonaro.
“Sentimos agora com o governo Bolsonaro uma movimentação internacional bem mais agressiva. A postura do FHC não era de degradador ambiental, era só uma situação em que o governo não tinha se organizado para controlar o que estava acontecendo na Amazônia. Não era de desmantelador de órgãos fiscalizadores”, explica Araújo.
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E TERRAS INDÍGENAS
Jornada do Brasil na proteção do bioma amazônico
Confira como os ciclos eleitorais impactam as políticas públicas para o meio ambiente
A trajetória entre devastação e preservação trilhada pelo Brasil não pode ser compreendida sem o histórico de políticas públicas e marcos legais sobre meio ambiente criados pelo governo federal e Congresso Nacional.
Após olhar para a Amazônia como uma área a ser ocupada e explorada, o que deu ensejo à proposta de integração por meio de grandes obras de infraestrutura a partir da década de 1960, o Brasil dedicou todo um capítulo de sua nova Constituição democrática à preservação do meio ambiente, alçando a Floresta Amazônica –mas também a Mata Atlântica, a Serra do Mar e o Pantanal – ao status de patrimônio nacional.
Em seguida, veio a Eco 1992, a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro, e a popularização do tema na opinião pública.
O número de unidades de conservação criadas na Amazônia, tanto federais quanto estaduais e municipais, experimentou uma aceleração entre os governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), quando foi delimitada 66% da extensão total dessas áreas de preservação, para em seguida sofrer uma queda abrupta nos governos posteriores de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). No mandato do presidente Jair Bolsonaro (PL) foram criadas somente três unidades de conservação, todas elas municipais.
A Amazônia brasileira tem hoje 357 unidades de conservação que abarcam 28% da área do bioma no país.
As terras indígenas também exercem um papel importante na preservação da floresta, historicamente apresentando baixas taxas de desmatamento. Nos últimos 35 anos as terras indígenas na Amazônia mantiveram preservadas 95% de suas áreas de floresta, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA).
A Amazônia brasileira abriga 424 terras indígenas, em diferentes estágios do processo de demarcação. O número de áreas homologadas, uma das últimas etapas da regularização, sofreu uma queda nos últimos 12 anos. Mais da metade da extensão dessas áreas na Amazônia foi homologada nos governos de Fernando Henrique Cardoso (38%) e Luiz Inácio Lula da Silva (18%). Os governos de Dilma Rousseff e Michel Temer homologaram 3% e 2% da área de terras indígenas na Amazônia.
O governo Bolsonaro não fez nenhuma homologação. O atual presidente tem posição contrária à ampliação de terras indígenas no país.
Terras públicas e grilagem
A omissão do governo federal e dos governos estaduais ao não definir o uso de terras públicas na Amazônia tem servido como um estímulo à grilagem e ao avanço do desmatamento.
Estudo do Imazon mapeou entre 2017 e 2020 sete mudanças na legislação fundiária federal e dos estados da região amazônica com o objetivo de regularizar ocupações de terras públicas antes consideradas ilegais, em muitos casos com o desmatamento das áreas para comprovar sua ocupação.
“O que a gente vive hoje é um momento de aumento do desmatamento, principalmente nessas áreas não destinadas, com a expectativa de que em algum momento o Congresso vai aprovar uma lei e vai permitir essa legalização porque ninguém vai querer retirar essas pessoas de lá”, afirma a advogada Brenda Brito, pesquisadora associada do Imazon.
O estudo do Imazon apontou que cerca de um terço (28,5%) da Amazônia é composto por áreas sem destinação de uso definida pelo poder público. A destinação é a definição de uma finalidade para a terra, como a criação de áreas protegidas ou reservas indígenas, ou ainda a transferência a proprietários privados por meio de regularização fundiária.
De 2013 a 2020, cerca de 40% do desmatamento esteve concentrado nessas terras públicas sem destinação de uso, o que, segundo a pesquisadora, é um indício de que a devastação foi motivada pela grilagem.
“A gente tem um padrão que é ocupar terra pública, desmatar e depois pedir um título de terra, e infelizmente, historicamente, esses pedidos acabam sendo atendidos com mudanças legislativas que beneficiam quem está invadindo terra pública.”
Brenda Brito,
Advogada e pesquisadora associada do Imazon
Estima-se que 60% das terras públicas sem destinação de uso seriam de responsabilidade dos governos estaduais, cuja legislação costuma ser menos rígida que a lei federal.
“A gente tem casos como o Amazonas, que tem a maior parte das áreas não destinadas, em que há uma lei estadual que não impõe de fato uma data limite de ocupação de terra pública”, diz a pesquisadora. “Então, a princípio, quem ocupar uma terra pública hoje e ficar cinco anos, que é o requisito da lei, poderia ser atendido com o título da terra. A gente diz que isso acaba sendo um estímulo constante para a grilagem de terras, é a própria lei estimulando esse tipo de ocupação.”
Segundo a pesquisadora, a destinação das terras para a criação de áreas de preservação inibem a grilagem e, consequentemente, o desmatamento, por tornar improvável a reversão das terras para propriedade privada no futuro.
“Se a gente quiser realmente como país conter o desmatamento, uma medida importante é destinar essas áreas que ainda não foram formalmente destinadas para uma finalidade de conservação. A gente sabe que áreas protegidas como unidades de conservação, parques nacionais, além do reconhecimento de terras indígenas e de comunidades tradicionais, têm um efeito inibidor do desmatamento”, diz a pesquisadora.
Créditos
Reportagem: Felipe Amorim
Arte: Lucas Gomes
Edição e coordenação de projeto: Bruna Borges