Crise humanitária na maior e mais populosa terra indígena do país tem repique com a retomada de força da exploração de ouro, e malária explode
O avião pousa na pista de Surucucu, o dia tem céu limpo, claridade e clima ameno, a região é uma das mais bonitas -com montanhas sinuosas e floresta densa- na maior terra indígena do Brasil. No entanto, bastam dois minutos após o desembarque para a confrontação com a realidade. Os olhos esquecem a paisagem. E passam a testemunhar a crise humanitária dos yanomamis.
Ainda na pista, que integra o PEF (Pelotão Especial de Fronteira) do Exército na região margeada pela Venezuela, um adolescente carrega nas costas uma criança desnutrida, frágil, que se agarra aos ombros e à cintura do parente para conseguir alcançar o avião que os levará para um hospital em Boa Vista, a 1 hora e 20 minutos de Surucucu.
A criança foi resgatada em sua aldeia por uma equipe médica em helicóptero a serviço do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami e da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), vinculados ao Ministério da Saúde. A comunidade onde vivem, Waputah, na região de nascente do rio Uraricoera, passou por um processo recente de cerco de garimpeiros de ouro e cassiterita.
O resultado foi quase automático. Não há água, não há comida, não há saúde.
A retomada da força de garimpos na terra yanomami, um ano após a declaração de emergência em saúde pelo governo Lula (PT) e quase um ano depois do início da operação de expulsão de 20 mil invasores, teve consequências imediatas na vida nas aldeias da região de Surucucu e no dia a dia do polo de saúde indígena da região, que ficam bem ao lado do PEF do Exército.
As regiões de Homoxi e Xitei, com diversas aldeias e roças, se viram tomadas de novo por garimpeiros. A agressividade e a falta de pudor são tão evidentes que as malocas, vistas de cima, parecem estar dentro das crateras gigantes abertas pelo garimpo. Na lógica da exploração ilegal de ouro, é como se os yanomamis não existissem.
Surucucu, então, voltou a reviver repiques da crise humanitária, com o helicóptero fazendo remoções sucessivas -todos os dias, são feitos de 10 a 12 voos, das comunidades ao polo de saúde, e muitas vezes até Boa Vista.
A reportagem foi a Surucucu no último dia 12, em um voo de uma equipe do DSEI Yanomami, e acompanhou um dia da rotina do trabalho de emergência.
Dificilmente os yanomamis que precisam de resgate, em razão de quadros graves de desnutrição, malária e infecções respiratórias, estão em comunidades distantes de garimpos.
Os militares de Surucucu ficam alheios a toda movimentação, tanto de garimpeiros quanto de profissionais de saúde indígena -apesar da presença criminosa a poucos quilômetros do pelotão de fronteira, e apesar do uso da pista do pelotão pela equipe sanitária.
É como se a crise humanitária não tivesse como palco uma região de fronteira, uma área de difícil acesso, um espaço aéreo poroso a avionetas do crime.
O posto de saúde já chegou a abrigar 580 yanomamis, em abril de 2023, em razão do alastramento da fome e da malária nas comunidades e da intensificação de resgates nas aldeias, com a maior presença de equipes de saúde durante a emergência, declarada em 20 de janeiro de 2023. Em junho, julho, o polo se viu esvaziado, diante do reforço no combate ao garimpo ilegal.
A partir de outubro, a situação se agravou outra vez, coincidindo com os novos cercos às aldeias. Um helicóptero é insuficiente para os resgates necessários. Não existe a superlotação do início da emergência, mas o fluxo é intenso e as enfermarias estão ocupadas. Até mesmo indígenas de aldeias em Auaris, a região mais distante, na fronteira com a Venezuela, buscam o polo de Surucucu.
O posto passou a contar com dois leitos de estabilização, recursos para sedação e intubação, espaços para pacientes mais graves e moderados, centro de recuperação nutricional e farmácia abastecida com medicamentos. A estrutura parece não alcançar as necessidades, diante da persistência das crises de malária e da desnutrição.
Crianças desnutridas correspondem à maioria dos pacientes, e a origem delas são comunidades cercadas pelo garimpo. “Aqui é o olho do furacão”, resume um dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente. A reportagem decidiu não identificá-los por atuarem em resgates em áreas tomadas pela exploração ilegal de ouro.
“Os pacientes vêm de áreas de garimpo. Os casos frequentes são desnutrição, pneumonia e malária grave, com rebaixamento do nível de consciência, desidratação e anemia”, diz o profissional. “O grande problema é a fome.”
Mesmo na ala destinada a pacientes sem gravidade, há crianças desnutridas, que necessitam de acompanhamento constante. Uma mulher yanomami, jovem, acompanha uma sobrinha com desnutrição. A criança tem 3 anos, segundo ela. A mãe, naquele momento, estava em Boa Vista, acompanhando outra filha, que precisou de transferência a um hospital da cidade.
“Tem um garimpo perto da comunidade. Ele suja a água que a gente toma, e as pessoas adoecem muito”, diz a mulher, em tradução feita por Junior Hekurari, liderança yanomami que mais denunciou a realidade de desnutrição grave nas aldeias. “São vários pontos de garimpeiros, em igarapés, nos rios grandes”, afirma a tia da criança em atendimento em Surucucu.
A menina tem diarreia aguda, e o sofrimento com as doenças associadas à fome dura mais de dez dias. “Se tiver de ir a Boa Vista, fazer o quê?”
Os avisos sobre a necessidade de remoção são feitos por indígenas jovens, por meio de mensagens via rádio ao polo base. As mensagens em português são curtas: “quase óbito”, “paciente ruim”, “pneumonia grave”, “malária grave”. Quem avisa raramente erra o diagnóstico, segundo os profissionais de saúde, tamanha a habitualidade com essas doenças.
“Eles pedem helicóptero para uma pessoa, e às vezes vem a família inteira, porque está todo mundo doente”, diz um profissional de saúde de Surucucu. E quando o pedido é feito, é porque o corpo já não aguenta mais os sintomas.
Por volta das 13h, uma equipe se prepara para o resgate de yanomamis em uma comunidade na região de Xitei. O aviso foi de que se tratava de malária.
No caminho, da janela do helicóptero, se avistam pistas clandestinas, buracos deixados para trás, cursos d’água barrentos e com aparência pastosa e malocas rodeadas de crateras a, no máximo, 200 metros de distância. Esse é o caso da aldeia Hupiano, onde os indígenas resistem. Parte dos garimpeiros permanece na aldeia, outros buscaram novos espaços para revirarem a terra.
O helicóptero pousa na aldeia Minau. Duas mulheres e quatro crianças já estão a postos. Eles têm febre alta, e são colocados rapidamente na aeronave, rumo ao polo de Surucucu. A suspeita é de que todos tenham malária. No dia anterior, também houve uma remoção de Minau a Surucucu em razão dos sintomas da malária.
Minau tem uma plantação vistosa de banana e mandioca. Os yanomamis da comunidade -são cerca de 30 famílias- não aparentam estar desnutridos. Esses indígenas passaram por um processo de fuga. Minau, antes, era em outro lugar.
O garimpo cercou a aldeia de uma forma tão agressiva que as famílias decidiram migrar pelo território, até encontrar um novo espaço, sem influência direta de garimpeiros. Casas circulares foram erguidas, cobertas por lona preta, material remanescente de acampamentos de garimpo abandonados.
“Essa comunidade sofreu muito com garimpo, com fome”, diz o yanomami mais velho da aldeia, em tradução feita por Junior Hekurari. “Os invasores incentivavam o conflito na comunidade. A gente veio para cá. Garimpeiro é nosso inimigo, não gosto nem de ir lá, nem quero ver.”
Agora, a nova Minau se vê diante da alta incidência de malária, realidade comum a aldeias cercadas pelo garimpo. A atividade predatória amplia criadouros do mosquito transmissor e a circulação de hospedeiros -ora os garimpeiros, ora os próprios indígenas, que têm o hábito de se deslocar pelo território, inclusive por áreas tomadas por invasores.
No polo de Surucucu, há um microscopista para a análise da incidência de malária nos indígenas. Mais da metade dos testes feitos dá positivo.
A doença se espalha porque o ritmo garimpeiro na terra yanomami voltou a ser intenso. Em menos de uma semana, indígenas contaram 56 embarcações do garimpo trafegando livremente por um ponto de barreira improvisado por agentes de fiscalização.
Cerca de 50 aviões do garimpo trafegam pelo território, segundo estimativa do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Para efeito de comparação, a frota para fiscalização pelo órgão é de cinco helicópteros.
Há uma pista clandestina de avionetas numa região cinzenta de fronteira, cerca de 3 mil invasores seguem atuando em garimpos, facções criminosas disputam espaços.
A repressão e destruição da logística de exploração de ouro não contam com apoio das Forças Armadas. Na ponta, estão agentes do Ibama, cujos helicópteros têm baixa autonomia de voo em razão da retirada de um entreposto no território para o reabastecimento de aeronaves. Esse entreposto era responsabilidade dos militares.
Mesmo assim, as operações prosseguem. Uma equipe do Ibama detectou um alerta recente de garimpo, de dezembro, e decidiu fazer uma incursão em área do rio Uraricoera, mais perto da borda da terra indígena.
A equipe usa dois helicópteros. Em terra, encontra um garimpo com tudo pronto para funcionar: acampamento, mantimentos, motores, geradores, antena de internet, tubulações, mangueiras, jatos e 14 galões abarrotados de combustível.
O lugar já havia sido explorado antes. Garimpeiros contratados por um homem de Boa Vista, detentor da logística, retomariam em três dias a exploração.
A ação do Ibama salva momentaneamente o igarapé que margeia a cratera já aberta. Uma estrutura estava montada na margem do curso d’água para o início da exploração de ouro. Os agentes colocam fogo em tudo. A água permaneceu límpida.
Mata adentro, os agentes encontram Antônio escondido, agachado na mata. É um jovem magro, de 20 anos, que garimpa na terra yanomami desde os 16. Os outros cinco garimpeiros fugiram e conseguiram escapar da fiscalização.
“Eu conheço vocês”, diz Antônio ao ver os repórteres. Ele tem na memória o dia em que fugiu do território, em fevereiro de 2023. Estava num barco azul abarrotado de cassiterita, com outros garimpeiros, dois deles usando balaclava, quando fizeram uma parada num portinho clandestino. A reportagem da Folha estava no portinho documentando a fuga dos invasores.
A foto de Antônio no porto do Arame -era um domingo, 12 de fevereiro de 2023- parece ser de uma pessoa bem mais jovem. O tempo transcorrido até o novo encontro parece ser bem superior a 11 meses.
Antônio voltou ao garimpo ilegal na terra indígena em maio. A mãe saiu do Maranhão quando ele tinha 10 anos para atuar no garimpo no território yanomami. O padrasto tinha uma balsa na região, queimada pela fiscalização. O jovem seguiu o mesmo caminho, como raizeiro e maraqueiro -funções desempenhadas diretamente na escavação da terra e na depuração do ouro.
“Como eu vou viver com R$ 3 mil na cidade? Aqui eu posso ganhar R$ 20 mil por mês”, afirma Antônio. “Já vivi coisa bem pior. Não tenho nada a perder.”
Os helicópteros da fiscalização partem no fim da tarde, o garimpeiro permanece. “Essa terra não é dos indígenas. Você diz que é?”
Profissionais de saúde com longa atuação na terra yanomami contam que, na década de 1980, o território era livre de malária. Aí veio uma onda invasora, na segunda metade da década, que se arrastou até os anos 90. A demarcação ocorreu em 1992. A terra yanomami é, hoje, a maior e a mais populosa do Brasil.
A invasão dos últimos cinco anos envolveu menos garimpeiros, mas é bem mais virulenta: destrói mais, com mais maquinário, tem amplo aparato logístico, ampla comunicação, menos aventureiros, mais dinheiro, maior exploração de trabalho escravo. E impinge a fome aos indígenas.
Uma retomada do território vai demorar, pelo menos, dois ou três anos, calculam profissionais de saúde da linha de frente. Até lá, Antônio e os outros invasores vão seguir fingindo que os yanomamis não existem.