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Reportagem Publication logo Abril 13, 2021

Opinião: Cruzei o Atlântico Para Levar Nossa Luta Munduruku ao Mundo

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The Jirijirimo waterfall, on the Yaigojé river, in the Brazilian state of Amazonas.
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The FLARES FROM THE AMAZON project seeks to warn of the increased dangers of deforestation and...

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A jovem indígena Val Munduruku durante a COP25 em Madrid. Imagem fornecida por Val Munduruku. 2019.

Essa é a realidade da Terra Indígena do povo Munduruku, à qual eu pertenço, onde nasci e cresci, localizada no alto Rio Tapajós, no município de Jacareacanga/Pará. Nos últimos meses, houve um grande aumento da invasão de nosso território por garimpos ilegais. Mesmo com altos números de casos de Covid-19 confirmados no município (341 casos, segundo o último boletim do município de 23 de julho), a atividade ilegal não parou, contribuindo para o aumento do desmatamento e contaminação na região.

Preocupação

Com a pandemia em curso e sem nenhum plano emergencial para atender às necessidades das aldeias indígenas, perdemos lideranças históricas que, para o povo Munduruku, eram consideradas grandes bibliotecas da cultura viva.

As preocupações são grandes para nós, indígenas, que dependemos diretamente do rio para tomar água, banhar e pescar. O mercúrio usado inadequadamente para a extração do ouro pelos garimpeiros é jogado diretamente nos rios, contaminando a água, os peixes e as pessoas.

Estudos apontam um alto nível de mercúrio no sangue dos Munduruku, o que pode provocar desde doenças mais leves até casos mais graves, incluindo até óbito. Os animais de caça, importante fonte de alimentação para os povos tradicionais, estão se afastando para lugares mais distantes. O aumento da violência também é resultado da atividade ilegal, uma vez que o garimpo atrai trabalhadores, em sua maioria homens, de diversas regiões do Brasil. Estes trabalhadores também sobrevivem em condições adversas e, por isso, contribuem para o aumento da circulação de drogas, porte ilegal de armas e prostituição.

"A maioria das lideranças indígenas que são contra o garimpo e defendem a vida, o planeta e a floresta em pé sofrem ataques e ameaças diariamente"

Conforme apontam laudos técnicos da Polícia Federal, os garimpos são responsáveis por jogar no Rio Tapajós mais de 7 milhões de toneladas de sedimentos todo ano, atingindo não somente a região do alto Tapajós, mas também a região do baixo Tapajós, a quase mil quilômetros de distância.

A maioria das lideranças indígenas que são contra o garimpo e defendem a vida, o planeta e a floresta em pé sofrem ataques e ameaças diariamente, chegando a ter que deixar seus próprios territórios.

Garimpeiros não indígenas aproveitam a ausência de políticas públicas na região para cooptar outros indígenas, que, por falta de alternativas de geração de renda, acabam não tendo outra saída a não ser ir trabalhar no garimpo ilegal. Em troca de suas terras, seu bem mais precioso, esses indígenas recebem uma pequena porcentagem do ouro, ficando a maior parte para os empresários, donos dos maquinários, que, inclusive, são caríssimos (com valor estimado de 10 milhões de reais). Estes mesmos empresários, além de tudo, não contribuem com tributos ou impostos para o governo local, estadual ou nacional, deixando para os territórios – e todos os seres vivos que neles habitam – apenas doenças e o colapso da biodiversidade da floresta amazônica.

Operação Verde Brasil 2

Em 5 de agosto, aconteceu, na Terra Indígena Munduruku, a Operação Verde Brasil 2, do Ministério da Defesa, que "atua para combater e reprimir delitos ambientais na Amazônia Legal e intensificou a aplicação de multas por crimes ambientais na região", segundo matéria publicada no site do Governo Federal, e contou, inclusive, com a ilustre presença do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Apesar da função explícita no título de seu cargo e do objetivo da operação que consta no site do governo, a enorme contradição implícita nessa visita de Salles ficou evidente quando o avião da Força Aérea Brasileira resolveu suspender as atividades para levar indígenas que têm envolvimento com garimpo até Brasília para se reunirem com representantes do Ministério do Meio Ambiente.

Segundo a reportagem do Jornal Nacional de 21 de agosto, fiscais do Ibama atearam fogo nas máquinas e acampamentos do garimpo. Garimpeiros reagiram e ameaçaram derrubar um helicóptero, como mostra uma gravação: “Mete bala para cima, meu amigo, e joga um helicóptero desse no chão, moço. Joga um helicóptero desse no chão. É mil ‘vez’, aí eles ‘vai’ pensar duas vezes de encostar num garimpeiro.” O ministro do Meio Ambiente conversou com o grupo que pedia para a operação parar e chegou a defender o garimpo em terra indígena. 

Na sequência deste evento, lideranças Munduruku enviaram uma carta ao MPF em que manifestaram sua oposição ao garimpo ilegal e reforçaram que o "grupo levado para Brasília era, na verdade, formado por sete moradores defensores dos interesses de garimpeiros" e que não representam o povo. Lideranças do Médio e Alto Tapajós se reuniram entre 21 e 23 de setembro, na aldeia Karapanatuba, durante a 19a Assembleia Geral Ordinária do Povo Munduruku, para fortalecer seu posicionamento e reafirmar a luta contra o garimpo ilegal. Em nota oficial, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) declarou seu total apoio aos Munduruku e contra a promoção do garimpo em terras indígenas.

Porém, no dia 2 de outubro, o mesmo grupo de apoiadores do garimpo que foi a Brasília – indígenas e não indígenas – bloqueou a BR 230 (Rodovia Transamazônica) para pedir o fim das fiscalizações nas terras indígenas. Quem me dera essa fosse uma das tantas fake news que circulam hoje no Brasil... 

Compromisso internacional com a Amazônia?

Nós, Mundurukus, sabemos que as empresas multinacionais e os governos negligenciam a preservação das florestas, ignoram os direitos e licenciamentos obrigatórios e contribuem para o estado de emergência climática em que nos encontramos, tanto no Tapajós quanto no resto do mundo.

"A Amazônia tem a capacidade de puxar o ar úmido do oceano para dentro do continente, o que quer dizer que a floresta faz chover onde não há chuva"

Mas por que a Amazônia é tão importante para o equilíbrio do clima do planeta?

O assunto é muito complexo, mas é importante ressaltar alguns aspectos que pouca gente sabe. A floresta amazônica é um sistema único no mundo. Ela tem a capacidade de puxar o ar úmido do oceano para dentro do continente – a chamada bomba biótica de umidade. Isso quer dizer, basicamente, que a floresta faz chover onde não há chuva. 

Quando as plantas respiram, elas retiram carbono da atmosfera e acumulam uma boa parte no solo. Existe uma estimativa do estoque de carbono, como chama essa acumulação, variando entre 70 e 130 bilhões de toneladas na Amazônia – um terço disso em terras indígenas. 

A água da Amazônia mantém o regime de chuvas no Brasil e nos países vizinhos. Ventos do Atlântico empurram a umidade pros Andes, formando um outro “Rio Amazonas” que corre no céu de norte a sul das Américas – são os chamados Rios Voadores. A transpiração das árvores e plantas também é um fator importante.

No total, 20 bilhões de toneladas de água são evaporadas pela Amazônia diariamente. E são precisamente esses compostos saudáveis de chuva que se perdem com a derrubada das florestas. Nos últimos 20 anos, 19% da Amazônia já foi desmatada. Se chegarmos a 40%, a floresta começa a perder suas características naturais. Se continuarmos nesse ritmo, em 15 anos a Amazônia deixará de ser floresta tropical, chegando ao seu ponto de não retorno.

O Brasil é um dos líderes mundiais em emissões, e isso se deve muito ao desmatamento e a mudanças do uso do solo. Sempre que acontece um incêndio florestal ou uma área é desmatada, o carbono retido pela floresta é liberado para a atmosfera. A criação de gado é um dos grandes fatores que contribuem para as emissões brasileiras devido à liberação de gás metano, 20 vezes mais poluente do que o gás carbônico.

Outra área importante da Amazônia é desmatada para plantar a soja que vai servir como ração do boi. Essa soja, no geral, é transgênica e exige o uso de agrotóxicos, que contaminam nosso alimento, os rios e igarapés.

Cruzei o Atlântico

Nós, os povos da floresta, somos peças fundamentais para a defesa da Amazônia e do equilíbrio do clima do planeta.

Por isso, em dezembro de 2019, eu participei da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP25), realizada em Madri, na Espanha, como ativista e membro da delegação de jovens do Engajamundo, organização ambiental brasileira. Atravessei o Atlântico sabendo da importância desse espaço para levar a voz dos povos indígenas, especialmente dos jovens, pois somos responsáveis por 80% da preservação das florestas que ainda restam no mundo. 

Mas, ao contrário de sentir dos representantes dos governos essa importância, o que senti em Madri foi a sensação de que estava ali apenas para ouvir e não pra falar. Senti dificuldade para acompanhar as pautas, pois a barreira da língua (e da linguagem) me impedia de entender as discussões técnicas para poder contribuir. 

"A frustração foi enorme ao perceber que as verdadeiras soluções não virão dos governos e dos documentos que eles assinam internacionalmente"

Senti nervosismo nos poucos espaços que tive de fala e praticamente nenhuma abertura para um diálogo real de soluções que venham das nossas raízes, do nosso modo de ser e viver. A frustração foi enorme ao perceber, durante as duas semanas que estive em Madri, que as verdadeiras soluções não virão dos governos e dos documentos que eles assinam internacionalmente, cheios de falsas promessas e falsas soluções.

Ali, ficou claro para mim que as verdadeiras soluções são construídas de baixo para cima e a sociedade civil global que lá estava reforçou o poder que as grandes mobilizações têm. Fiquei impressionada com a Marcha Global pelo Clima, que reuniu mais de 500 mil pessoas nas ruas em defesa da justiça climática.

Me arrepiei ao subir no palco para apresentar um flashmob de resistência dos povos da Amazônia para toda aquela gente. Senti uma adrenalina enorme ao deixar na porta da área destinada ao governo brasileiro um "fake book" com as mentiras que Salles contou em seu primeiro ano de mandato junto a uma motosserra cheia de sangue das tantas árvores que ele já matou. 

Embora fosse proibido mencionar o nome de qualquer país nas ações dentro da COP, me alegrei ao conseguir informar pessoas do mundo inteiro sobre o quanto o Brasil está contaminando suas águas de diferentes maneiras: oferecemos água com mercúrio, água com petróleo, água com lama e água transparente, que parece limpa, mas provavelmente tem agrotóxico, para quem estivesse circulando dentro do espaço oficial da ONU. Ao provocar as pessoas mostrando as "opções" de água que tínhamos para oferecer, abrimos espaço para o debate sobre a qualidade da água que especialmente nós, os povos da floresta, temos acesso hoje no Brasil.

O território é o espaço físico necessário para a sobrevivência de nossas culturas. Mas a experiência na COP me mostrou que não é só isso. Ao defender nosso território de garimpeiros e outras ameaças à destruição da floresta amazônica, estamos também contribuindo com a luta dos povos tradicionais das pequenas ilhas do Pacífico, que têm previsão de afundar em 30 anos devido aos efeitos do desequilíbrio do clima do planeta. 

Nosso modo de viver não degrada nem destrói o planeta. Queremos incentivos para atividades econômicas que de fato sejam "sustentáveis", ou seja, sustentem a vida de seres humanos e não humanos na Terra. Por isso, a participação de indígenas em espaço de tomadas de decisão é tão importante, pois nossas realidades e especificidades precisam ser ouvidas e aprendidas pelos governos e pelas pessoas no mundo inteiro. 

Um ano depois de cruzar o Atlântico, em meio a uma pandemia interminável, sei mais do que nunca que lutar contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku vai muito além de proteger nosso território sagrado e nossa cultura. É somar – e guiar, apontar o caminho – para a luta de milhares de pessoas no mundo inteiro por justiça climática. 

Precisamos nos unir para defender a Amazônia ou não haverá futuro para vivermos.