Projetos de piscicultura sustentáveis, como o da comunidade de Tabalascada, em Roraima, têm ganhado mais importância frente à degradação provocada por lavouras e garimpos ilegais.
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São 5:30 da manhã do domingo de dia das mães. Deodato Leocadio, do povo Wapichana, prepara o café enquanto espera a visita do atual tuxaua (cacique), que virá buscar a doação de peixes para o almoço comemorativo da comunidade de Tabalascada.
Lá fora, o barulho da chuva forte que marca o inverno amazônico se sobrepõe ao canto de galos e galinhas, ao latido de cães e ao ronco dos porcos. Havendo trégua, Deodato joga o milho que alimenta os animais, que andam soltos ao redor da casa, bastante afastada do centro da comunidade.
Sob a lâmpada tênue que ilumina a casa, Deodato abre as caixas térmicas onde os peixes, pescados no fim do dia anterior, são guardados com gelo para manter o frescor até a hora do almoço comemorativo.
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“A piscicultura foi uma forma que encontramos para poder continuar comendo um peixe saudável”, diz Andreia Machado, esposa de Deodato, também do povo Wapichana. Desde 2019, o casal é responsável por cuidar das centenas de tambaquis, peixes tradicionais da região, criados como parte do projeto de piscicultura da comunidade.
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A comunidade de Tabalascada fica localizada na terra indígena (TI) de mesmo nome, no município do Cantá, em Roraima. A TI é uma entre nove da região da Serra da Lua, que é caracterizada por terras demarcadas em ilhas: territórios menores, cercados por fazendas e lavouras – diferentemente de TIs como a Raposa Serra do Sol e a Terra Yanomami, ambas no mesmo estado, que são demarcadas em terra contínua.
Demarcada e homologada em 2005, a TI Tabalascada possui 13 mil hectares e abarca três comunidades: Laje, Campinarana e Tabalascada. A TI tem uma população de aproximadamente 980 habitantes, segundo o censo realizado pelas comunidades em Junho.
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O tanque onde Deodato e Andreia criam os tambaquis fica nos fundos da casa onde vivem. São menos de cinco minutos de caminhada sobre uma grama fresca, à sombra de mangueiras. Uma cerca se abre e é logo fechada, para que os cavalos – em algum lugar depois de onde a vista alcança – não fujam.
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Chegando à margem, o tanque parece um lago natural. A água esverdeada e um pouco barrenta indica movimento: não só o nado dos peixes, mas também a presença de um “olho d’água”, uma nascente que alimenta o reservatório.
Ele foi escavado por volta de 2009 pelo pai de Deodato. Naquele momento, mesmo antes do surgimento do projeto de piscicultura, o pensamento que guiava seu pai era o de cuidar da comunidade – valores que ainda acompanham Deodato.
“Muitas vezes, deixamos de cobrar pelo peixe, porque conhecemos as pessoas da comunidade e sabemos as condições de cada um. Sabemos que há pessoas que passam necessidade e não podem pagar”, diz Deodato.
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Os tambaquis criados atualmente chegaram à comunidade através de um projeto do Campus Amajari do Instituto Federal de Roraima, que não só doou os alevinos (peixes recém-eclodidos dos ovos), mas também ofereceu uma formação para o cuidado dos peixes – algo que possibilitou a que Deodato e Andreia não repetissem erros do passado.
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“Da primeira vez que tentamos criar, colocamos mais de dois mil peixes no tanque, e quase todos morreram por falta de espaço”, conta Deodato. “Quando começamos em 2017, nós não sabíamos como criar peixes: não sabíamos a quantidade de ração, quanto tempo demorariam para crescer… Foi um processo de aprendizagem”, diz.
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O projeto de piscicultura é apenas um dos projetos desenvolvidos pela associação de produtores da comunidade de Tabalascada, da qual Andreia é presidente. São aproximadamente 40 associados, mas menos de dez estão envolvidos nesse projeto específico.
Hoje, Deodato é responsável por alimentar os peixes, conferir a qualidade do pH da água e fazer a limpeza do tanque, que muitas vezes é feita com o apoio dos demais associados.
Nos últimos anos, projetos de piscicultura sustentáveis, como o da comunidade de Tabalascada, têm ganhado mais importância, especialmente com a contaminação de rios e igarapés com agrotóxicos das lavouras, e com o aumento da contaminação de peixes por mercúrio oriundo de garimpos ilegais no estado.
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Andreia lembra que, antigamente, quando se pescava um peixe bem cedo pela manhã, ele permanecia em boas condições até o começo da tarde. “Hoje, mal chegamos em casa antes que o peixe esteja estragado", diz. Andreia conta que, há tempos, deixaram de pescar nos igarapés, e só comem o peixe que produzem.
Ela também recorda as ocasiões em que agrotóxicos dispensados por aviões em lavouras próximas à comunidade causaram danos à sua saúde e à de sua família, e compartilha sua preocupação com o futuro.
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“O que vai acontecer quando chover? Toda essa água contaminada vem para cá, e vai nos afetar. Não sabemos o que esses químicos contém, mas sabemos que tudo isso vai estar nos nossos peixes”, diz.
Para o casal, a maior preocupação é com a produção de um alimento que seja saudável. Também por essa razão, sempre que possível optam por alimentar os tambaquis com uma ração caseira, feita com casca de macaxeira, buritis, abóbora e outros vegetais.
“Nosso foco nunca foi vender em grande escala, mas sim ter o peixe para nos alimentar”, Deodato explica, ao contar que o momento em que sua família passou mais necessidades em termos de alimentação foi quando não estavam produzindo peixe.
Mas a piscicultura também representa uma possibilidade de fonte de renda, que possa contribuir com o sustento da família e da comunidade. “Hoje, esse projeto realmente traz sustentabilidade, tanto familiar, quanto da comunidade, por isso não pensamos em deixá-lo acabar.”