Reivindicação atravessou sete governos e não saiu do papel; documentos registram há 20 anos endividamento e 'superexploração' de indígenas.
O processo de demarcação da terra indígena onde a exploração de piaçaba é feita de forma rudimentar, num modelo de endividamento que inclui grupos de yanomamis, se arrasta há 16 anos na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Documentos do processo, obtido pela Folha por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), registram desde o início a ocorrência do sistema de aviamento para a extração da piaçaba, o endividamento de indígenas, a "superexploração" dessa mão de obra e condições análogas à escravidão na execução do trabalho extrativista.
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Por isso, associações que representam os indígenas da região do médio rio Negro defendem a demarcação da Terra Indígena Aracá-Padauiri, vizinha à porção no Amazonas da Terra Indígena Yanomami, o maior território demarcado do Brasil.
Os pedidos por delimitação e proteção de uma nova área, como forma de evitar a atuação de atravessadores no mercado da piaçaba, já passaram por sete governos e não resultaram nem mesmo nos primeiros atos necessários para a homologação do território.
A demarcação enfrenta forte oposição e campanha contrária empreendida por patrões da piaçaba, que controlam a compra da fibra por meio do fornecimento de mantimentos e combustível aos trabalhadores. Também há resistência por parte de políticos de cidades pobres que giram em torno do negócio, como Barcelos (AM). A eles se somam empresários da pesca esportiva.
Reportagem publicada pela Folha neste sábado (13) mostrou que a extração da piaçaba, a fibra de uma palmeira da Amazônia usada na fabricação de vassouras, inclui a exploração de yanomamis de aldeias da terra indígena no lado do Amazonas –o território yanomami se estende por Roraima.
Há indícios de retirada da fibra de dentro da terra demarcada, por pessoas que não vivem no território.
Indígenas percorrem longas jornadas até comunidades em afluentes do rio Negro, como o rio Padauiri, para se aviarem, ou seja, para obterem mantimentos básicos –como farinha e biscoito– e gasolina necessários ao trabalho da extração da piaçaba. O pagamento é feito com a própria fibra extraída, e há endividamento no curso desse processo.
O aviamento é uma realidade comum aos indígenas –principalmente da etnia baré– do território vizinho, não demarcado. Nas comunidades vivem ainda filhos, netos e bisnetos de soldados da borracha, nordestinos que foram levados à Amazônia para o trabalho em seringais, onde também predominava o aviamento.
O processo da Funai que trata da demarcação da Terra Indígena Aracá-Padauiri estima que 800 indígenas vivem no território. São barés, tukanos, baniwas, tarianas, desanas e pira-tapuias, segundo a Funai.
Na terra yanomami, são 10,3 mil indígenas no lado do Amazonas. Esta porção é vizinha à terra Aracá-Padauiri. No lado de Roraima, onde uma crise humanitária foi provocada em razão da invasão de mais de 20 mil garimpeiros, há outros 17 mil yanomamis.
O território que pode ser demarcado é enorme, e não há definição nem mesmo da extensão a ser incluída numa eventual delimitação de área.
Um levantamento preliminar apontou a existência de 44 comunidades indígenas no trecho entre Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro (AM). Essas comunidades estão no rio Negro e em afluentes como os rios Padauiri, Aracá, Preto e Demeni –ao longo dos três primeiros afluentes há exploração de piaçaba.
As reivindicações por demarcação resultaram em processos distintos. A Terra Indígena Aracá-Padauiri compreende inicialmente 18 comunidades, entre elas Tapera e Nova Jerusalém, que são entrepostos da piaçaba para patrões e que contam com fluxos de yanomamis atuantes no processo de extração da fibra.
As primeiras cobranças por demarcação ocorreram na década de 90, conforme o processo em curso na Funai. Em 2001 e em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ofícios da Asiba (Associação Indígena de Barcelos) ao Ministério da Justiça e à Funai pediram formalmente a delimitação do território.
Os ofícios denunciaram impactos do "turismo de selva", inclusive com prejuízo à atividade de extração da piaçaba. Os documentos já cobravam a instalação de um GT (grupo técnico) pela Funai.
"Nesta região ainda vigora o sistema de recrutamento de mão de obra indígena, para os trabalhos extrativistas", afirmou um coordenador da Funai em documento de dezembro de 2002. "A superexploração da mão de obra indígena, bastante relatada durante os trabalhos de levantamento, se constitui como elemento recorrente desse sistema."
No mesmo mês, um antropólogo do órgão citou, em outro ofício, apontamentos feitos pela Asiba a respeito da exploração de indígenas por patrões da piaçaba. Esse sistema gerava "enormes e desorganizadas listas de dívidas". "O endividamento ainda representa uma forma eficaz de mobilização da mão de obra indígena", afirmou.
Um GT só foi instituído pela Funai em 2007, no segundo governo Lula (PT), para estudos de identificação da área indígena. Novos GTs foram formados em 2009 e 2010. Em 2011, o MPF (Ministério Público Federal) pediu um cronograma urgente para a demarcação. "A situação social da área é grave", disse.
Tanto a Asiba quanto a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) comunicaram ao MPT (Ministério Público do Trabalho), em 2011, a existência de endividamento de indígenas na relação com patrões da piaçaba, o "mesmo sistema de aviamento da borracha no século 19".
O MPT, o MPF e auditores do Trabalho fizeram ações de resgate de trabalhadores em condições de escravidão em piaçabais em 2014. Naquele ano, a Justiça Federal deu 45 dias para a Funai apresentar um relatório de delimitação do território; a demarcação deveria ocorrer num prazo de dois anos, conforme a decisão, que acatou pedido em ação civil pública do MPF.
A decisão não foi cumprida. Em setembro de 2015, um documento da Funai apontou: "A herança do passado é notável, já que, até os dias atuais, perdura o sistema de aviamento: adiantamento de mercadorias a crédito, por parte dos chamados patrões, com o fito de promover o endividamento da população indígena local."
O documento foi elaborado pela coordenação de identificação e delimitação de terras indígenas. "Desprovidos de outra possibilidade que não a venda de sua mão de obra a preços irrisórios, [os indígenas] passam a trabalhar nas colocações extrativistas, submetendo-se a condições análogas da escravidão." Isso justificaria a necessidade de demarcação, segundo técnicos da Funai.
No governo Jair Bolsonaro (PL), que promoveu um desmonte da Funai, o processo ficou praticamente parado. O órgão constituiu um novo GT, em agosto de 2019, para "realizar estudos de natureza fundiária e cartorial da Terra Indígena Aracá-Padauiri". No processo, pelo menos até meados de 2022, não há registros de avanços na demarcação.
Desde a Constituição de 1988, Bolsonaro foi o primeiro presidente da República a zerar tanto as declarações de posse –atos que antecedem as homologações– quanto as demarcações definitivas de terras indígenas. A homologação é uma atribuição do presidente.