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Reportagem Publication logo Julho 12, 2023

Sementes Para O Amanhã: Recursos da Floresta Se Transformam Em Biojoias E Artesanato Pelas Mãos De Projeto Em Comunidade Indígena

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Na região da Serra da Lua, em Roraima, as comunidades indígenas abraçam a sua ancestralidade na...

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Elton colocando o cordão em um pingente de barro. Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023.

Um Só Planeta conversou com professor e artesão que criou projeto que oferece fonte de renda extra para as famílias da Terra Indígena e promove a conscientização socioambiental de turistas que visitam o local

A arte entrou na vida de Elton Tenente, do povo Taurepang, com a chegada dos gêmeos. Com a notícia da gravidez da esposa, o professor de educação indígena sentiu crescer a ânsia de que os filhos que estavam para nascer fossem criados no âmago de sua cultura tradicional. “Eu não achei, nesse caminho, outra coisa maior do que a arte”, diz.

Assim surgiu, em 2016, na comunidade Mangueira, o projeto Semente das Artes, uma iniciativa que vem resgatando e fortalecendo o artesanato tradicional da região.

Subindo uma escada de madeira, em cima da casa da família, está o ateliê onde funciona o projeto. Sob telhas de amianto, uma única parede de alvenaria com tijolos à mostra é abraçada por três "meias paredes" de madeira, na altura da cintura. Lá fora, o horizonte em aberto faz um convite: vivenciar, por meio da arte, a cultura indígena no local onde acontece.


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Elton diante do mural da Semente das Artes — Foto: Amanda Magnani
Elton diante do mural da Semente das Artes. Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023.

Mangueira é uma das seis comunidades da Terra Indígena (TI) Araçá, localizada na Região Amajari. Homologada em 1982, a TI Araçá tem uma área de 51 mil hectares e é o lar de cerca de 1.900 habitantes, segundo dados de 2022 do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste. Como a maioria das TIs no estado de Roraima, sua demarcação é em ilha, o que significa que está rodeada de lavouras e que seu acesso a recursos naturais, incluindo aqueles necessários para a produção do artesanato, é limitado.

No centro do ateliê, a mesa, de uma madeira escura e maciça, ostenta um festival de texturas. Sementes das mais diversas cores se entremeiam por pedras, linhas, ferramentas e pingentes de barro ornados com grafismos tão intrincados, que chega a ser difícil imaginar como cabem em superfícies tão diminutas.

Pingentes/colares de barro com grafismos — Foto: Amanda Magnani
Pingentes/colares de barro com grafismos. Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023.

Enquanto caminha pelo espaço, contando a história da Sementes das Artes e apresentando cada objeto à vista e a função que exerce, a eloquência na voz e o brilho nos olhos de Elton denunciam a experiência como educador. O professor e artesão é licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Roraima e hoje trabalha na administração de dezesseis escolas estaduais indígenas na Região Amajari.

O artesanato, que surgiu para Elton como algo a que se dedicava apenas nas horas vagas, foi crescendo em importância.

Como o próprio nome já diz, as sementes são o carro chefe do projeto. “Comecei trabalhando com sementes de açaí, mas hoje já são muitas outras sementes regionais”, conta Elton. São raras as vezes, no entanto, em que o próprio artesão vai em busca de coletá-las: normalmente, elas são compradas de extrativistas das próprias comunidades. “Algumas vêm pintadas ou beneficiadas. Outras chegam no estado natural”, acrescenta.

Sementes usadas na produção de adornos — Foto: Amanda Magnani
Sementes usadas na produção de adornos. Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023.

Essas sementes serão trabalhadas para se tornar peças de biojoia como colares, brincos e pulseiras. Os materiais usados na produção combinam elementos tradicionais e modernos. “Onde antes eu usava a fibra de buriti na produção de um colar, por exemplo, hoje eu uso o fio encerado, que tem uma durabilidade maior”, explica Elton. E o mesmo vale para as técnicas: “se há uma tecnologia que possa melhorar e facilitar a fabricação, nós a utilizamos.”

Hoje, a Semente das Artes representa, também, uma fonte de renda extra para a família, uma alternativa que o professor vem trabalhando para disseminar. “Eu sempre falo para a comunidade: além do prazer que se experimenta ao produzir as peças, a venda delas pode ajudar a família. O potencial econômico é muito grande”, diz.

Casa do Elton e Semente das Artes — Foto: Amanda Magnani
Casa do Elton e Semente das Artes. Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023.

Mas a venda do artesanato não é sua única forma de atuação – nem econômica, nem culturalmente. Desde 2019, o projeto tem uma parceria com o Sesc de Roraima para a realização de oficinas onde além de degustar a Damurida (prato tradicional do estado) e vivenciar rodas de conversa, cantos e danças tradicionais, turistas têm a chance de aprender a confeccionar adornos de semente e de barro, o outro material que alicerça a Semente das Artes.

Na comunidade, a retirada do barro é feita de forma a evitar a degradação do seu local de origem. Depois de retirado, o material seca no sol até se tornar um pó que, após ser peneirado, será novamente misturado com água formando a argila usada na fabricação.

Elton retira barro para mostrar a textura que ele tem. A região tem barro de diferentes cores — Foto: Amanda Magnani
Elton retira barro para mostrar a textura que ele tem. A região tem barro de diferentes cores . Imagem por Amanda Magnani. Brasil, 2023..

Diferente das sementes, trabalhar com barro é algo mais delicado. “Para manusear o barro, é preciso obedecer algumas regras e demonstrar o devido respeito”, explica Elton.

Sabrina Assunção Viana de Souza, atual gerente de Hotelaria e Turismo do Sesc Roraima, acompanhou a iniciativa desde o princípio. “Nós pedimos apoio financeiro do SESC Nacional para identificar na região iniciativas que tinham potencial para desenvolvimento do turismo de base comunitária. Foi assim que conheci o Elton e a Semente das Artes”, conta.

Para ela o foco principal dessa parceria é fortalecer o conhecimento e a cultura local que, muitas vezes, não recebem a devida atenção. “Nosso público é formado principalmente por trabalhadores do comércio em Roraima, que acreditam já conhecer as culturas indígenas, mas que ainda têm muito por aprender”, afirma.

Mas com as transformações ambientais nos arredores da comunidade, do desmatamento à construção de rodovias sobre áreas de retirada do barro, a Semente das Artes enfrenta riscos e desafios. Seu trabalho, nas palavras de Elton, “depende de recursos naturais em abundância".

“Se a destruição continuar como está, esses são recursos que não voltam. E uma coisa não existe sem a outra: não temos como manter nossas manifestações culturais sem o nosso ambiente. Ele sempre vai estar junto”, diz.

Para os povos indígenas, a sobrevivência ambiental e cultural estão intimamente conectadas. “Seja na nossa produção, seja em apresentações culturais, a gente precisa ter de onde tirar as sementes, as tintas, a palha do buriti”, diz Elton.

E é nesse sentido que, para o professor, a troca de experiências com quem vem de fora é repleta de significado: “quando um visitante vai embora, ele leva, literalmente, um pedacinho da nossa terra e da nossa história", completa.