Esta história também pode ser lida em inglês e espanhol.
Todo ano, nas semanas anteriores à Quarta-feira de Cinzas, Gerardo Chasoy – indígena dos povos inga e kamentsa do Vale de Sibundoy, que mora no estado colombiano de Putumayo – confecciona as máscaras que serão usadas no chamado “grande dia”, ou Bestkante, em língua nativa. Trata-se de uma celebração tradicional e religiosa na qual os indígenas do vale pedem perdão e recordam, com desfiles e danças, um dos momentos mais difíceis da História: a escravidão durante o período colonial.
Nessa época do ano, a rotina de Gerardo Chasoy é sempre a mesma: ele escolhe um pedaço de madeira de salgueiro branco, pau-rosa ou embaúba (espécies de árvores nativas da região). Depois de cortá-lo, ele o lixa até que a superfície fique lisa e, só então, começa a esculpir com muita paciência. Primeiro os olhos, depois a boca, até que vai definindo a expressão de um novo rosto. Mas as máscaras que hoje esculpe não só dão forma a um personagem para o dia do perdão como tentam captar os sentimentos da pandemia que fez com que, pela primeira vez, o Bestkante, tivesse que ser cancelado para prevenir novos contágios. Agora esses rostos tentam lembrar a dor da perda de tantos amigos e parentes e o medo de uma doença nova, mas também a esperança de superá-la.
“Para criar uma máscara é preciso apenas sentir a mágica de desejar expressar algo através da arte. O que contamos com as máscaras é o dia a dia da vida indígena: a alegria, a tristeza, o choro, a natureza”, conta Gerardo Chasoy, enquanto descreve as máscaras que decoram uma parede de seu ateliê localizado no Vale de Sibundoy, em meio à densa selva colombiana na bacia do rio Amazonas e onde mais da metade da população é indígena.
Como sempre fez em toda segunda-feira antes da Quarta-feira de Cinzas durante tanto tempo, neste ano em que a pandemia mudou tudo Gerardo Chasoy pendurou e expôs em seu ateliê as máscaras para o Bestkante. A figura, as cores e cada um dos detalhes permaneceram os mesmos. Mas algo mudou: a expressão dos sentimentos foi tomada por uma doença que primeiro os encurralou, e que depois deu lugar à necessidade de que se organizassem para se refugiarem nas plantas. “Medo, morte, incerteza, mas também admiração e a força da medicina tradicional, que é um sopro de vida. O coronavírus trouxe tudo isso junto aos povos indígenas”, explica.
A nova doença, a Covid-19, chegou ao estado de Putumayo em 10 de maio de 2020. É o que consta no registro oficial do país – quase um mês depois da divulgação do primeiro caso na capital, Bogotá.
A pandemia abalou as comunidades. Os sentimentos festivos das máscaras indígenas deram lugar a outras expressões. As autoridades locais se viram forçadas a suspender a festa do perdão nas ruas. Desta vez não houve bailes, nem grandes desfiles. O Bestkante foi vivido e celebrado de dentro das casas, em isolamento. Obrigados pela emergência, os líderes ancestrais mudaram uma antiga tradição cultural para preservar vidas.
Jesús Quinchoa, governante indígena inga de Colón, um dos quatro municípios que compõem o Vale de Sibundoy, diz que “para as comunidades indígenas, a magnitude da pandemia foi um balde de água fria. Mudou completamente nossa forma de viver. Tivemos que restringir o Bestkante porque como governante não podia permitir que a comunidade se expusesse ao contágio. É muito difícil porque nosso ‘grande dia’ é o início do Ano Novo. As famílias ficaram muito tristes por não poderem visitar os amigos em uma data tão importante”.
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A pandemia obrigou os indígenas ingá e kamentsa a quebrar um dos princípios mais importantes de sua essência ancestral: o de viver em comunidade. Os rituais familiares, o cuidado das plantações, a venda das colheitas no mercado e espaços tão sagrados como o shinyak (o fogo na cozinha de uma casa), onde o conhecimento tradicional é compartilhado em grupo, tiveram que ser adiados.
As cozinhas tradicionais nos povos indígenas da Colômbia são a expressão da multiculturalidade: são nesses lugares que se prepara a comida e a família se reúne. Para os kamentsa, a coesão familiar gira em torno do shinyak, o fogo, que é o elemento fundamental que oferece calor, luz e proteção.
Para Judy Jacanamajoy, antropóloga do Valle de Sibundoy, a espiritualidade deve ser vivida em comunidade, e suspender esses espaços de diálogo gera danos irreparáveis. “Antes da pandemia, o shinyak era compartilhado em grupos de várias pessoas. A espiritualidade é o tema mais importante para a nossa comunidade, e com a pandemia não se podia receber ninguém para dar orientação às famílias ou oferecer um tratamento. Isso também é feito com a medicina tradicional com yagé do cipó sagrado (conhecida como “ayahuasca”, em outros países). Com os encontros proibidos, foi difícil equilibrar-se”, explica a especialista indígena.
Em meio à incerteza e o desconhecimento sobre o real avanço do coronavírus na Colômbia (uma vez que as informações nunca chegavam ao território em língua indígena), os indígenas do Vale de Sibundoy recorreram àquela que sempre foi sua principal ferramenta de sobrevivência: a própria terra. “Utilizamos plantas para enfrentar a Covid-19. Nos purificávamos com yagé e depois fazíamos limpezas com jatobá, defumadores e essências de urtiga, eucalipto, pau-santo e outras plantas do nosso jardim botânico”, destaca o taita (denominação para o pajé ou médico tradicional) indígena Juan Bautista.
Foi justamente o “sopro de vida”, como Gerardo Chasoy se refere à medicina tradicional, que não só permitiu que muitos indígenas se amparassem nas plantas usadas historicamente por eles para proteção de doenças e seus sintomas, como também ajudou a despertar uma confiança que nem as máscaras nem o isolamento conferiam a eles. “Foi difícil porque tínhamos que controlar o medo. Havia muita desinformação sobre o tema, e as pessoas não se sentiam seguras. Então tivemos que criar nossas próprias formas de proteção. Eu pensava ‘podemos nos contagiar a qualquer momento, mas temos que ter fé que não vamos morrer’”, acrescenta o taita Juan Bautista, que até hoje atende e ajuda os infectados de Covid.
Até março de 2021, o coronavírus havia afetado 80 povos indígenas da Colômbia. E, segundo números do Instituto Nacional de Saúde (INS), pelo menos 1.185 indígenas de diferentes etnias tinham morrido de Covid-19 até então. O instituto aponta que outros 37.522 indígenas foram infectados. Apenas no estado de Putumayo, foram relatados mais de oito mil contágios e 320 vítimas no mesmo período.
A consciência de comunidade e a força espiritual que tanto caracteriza os povos indígenas foram os principais aliados em uma batalha travada contra a morte.
Guarda indígena contra o coronavírus
Embora o primeiro caso de Covid no estado de Putumayo tenha sido registrado recentemente, em 10 de maio, um mês depois da confirmação do primeiro caso da doença na Colômbia, os povos indígenas já tinham formado, em março, uma Guarda Indígena que vigiava as estradas de acesso a seus territórios para impedir a entrada de pessoas estranhas. E como já tinham feito em situações anteriores de emergência, mais de 60 mil integrantes do exército ancestral deixaram seus tradicionais cassetetes de madeira e se armaram de pequenos frascos de álcool gel e máscaras para proteger o território.
No Vale de Sibundoy, desde 25 de março cerca de 160 integrantes da Guarda Indígena estabeleceram jornadas de controle nas fronteiras. Durante quase dois meses eles se revezaram a cada 12 horas de trabalho para garantir que ninguém entraria em suas terras sem as medidas necessárias de precaução, e incentivaram os moradores locais a cumprirem o rigoroso isolamento imposto pelo governo da Colômbia.
Em tempo recorde, como conta Luis Jansasoy, da Guarda Indígena do Vale de Sibundoy, eles tiveram que aprender quem era o inimigo que enfrentavam e, usando alto-falantes e emissoras locais (como a Rádio Waira), explicaram a cada morador do vale e do estado que o que estava em perigo eram suas próprias vidas.
“Foi muito difícil controlar a população. As pessoas saíam sem máscaras, sem nenhuma proteção. Nosso trabalho foi fazer campanhas de prevenção contra a Covid-19. Explicamos como lavar as mãos, como usar as máscaras e o álcool gel, dispersávamos aglomerações. Tivemos que agir em meio a uma complicada situação sanitária”, conta Jansasoy.
Em todo o estado, o severo toque de recolher foi entre 18h e 5h da manhã, e durou mais de três meses. Além de declarar o isolamento obrigatório, o governo do estado distribuiu 10.035 cestas básicas e 1.049 kits à população indígena do Alto e Baixo Putumayo. A comunidade também adotou sistemas de trocas de cultivos e colocou em prática um de seus princípios mais importantes: a solidariedade ou Jenajabuacham, o princípio de ajuda mútua.
Uma tragédia anunciada?
O entorno do avanço da pandemia foi cercado de incertezas em todo o mundo. Durante um ano, a ciência teve que enfrentar um inimigo desconhecido, mas para os povos indígenas o surgimento de um novo vírus não foi uma surpresa. O artista indígena Gerardo Chasoy, Judy Jacanamajoy e o taita Juan Bautista coincidem em uma ideia: os sábios pressentiam que algo assim aconteceria no mundo pela relação prejudicial da humanidade com a Terra.
“É algo profundo que vem da nossa visão de mundo. O que os taitas sentiam através da energia era que aconteceria uma forte mudança que sacudiria o planeta. Eles falavam da necessidade de se voltar à terra, porque embora sempre falássemos da importância de proteção e cuidado da mãe Terra, fazia falta sentir e seguir isso de fato. É um forte chamado para o despertar de consciência da humanidade”, explica Judy Jacanamajoy.
O medo da morte, a incerteza e a força de um povo indígena que se protegeu com seus guardiões, se refugiou nas plantas e preservou a vida da comunidade acima de todas as coisas, são lembranças contadas no Vale de Sibundoy. São apenas palavras de um passado que ainda não acabou, porque o vírus continua presente. As máscaras de Gerardo Chasoy narram essas memórias, o dor da perda, e a passagem do medo e do desespero à esperança e o amparo de viver em comunidade. Essas peças, diz o artista, imortalizam os sentimentos de seu povo em relação a um vírus desconhecido, mas ele não tem mais medo. Na verdade, agradece à terra por lembrá-lo da importância de se voltar a ela.