Nos inícios dos anos 2000 o terreno ao lado da casa de Seu Macaxeira foi comprado por um sulista recém chegado. De início, Seu Macaxeira ficou feliz com a chegada do novo vizinho. Era simpático e dizia que vinha trabalhar a terra. Ao se apresentar, falou que queria mesmo vir para um lugar tranquilo, que lá no Sul tinha tido muito atrito com os vizinhos. Deu a impressão de que veio para se estabelecer. Seu Macaxeira havia se mudado em meados de 1999 para a comunidade de Santos da Boa Fé, próximo à Rodovia Curuá-Una, em Santarém (Oeste do Pará). Estava contente com a sua produção. Ali plantava mamão, cupuaçu, graviola, batata, maracujá e macaxeira – tanta que lhe rendeu o apelido que leva até hoje, aos 64 anos. Todos chamam Antônio Alves assim: Seu Macaxeira. Com seu plantio, sustentava quatro filhos. Sem veneno. Naquele momento, virada do milênio, a soja sequer figurava em seu horizonte.
“Foi um vizinho muito bom, só que aí ele começou a comprar terras”, relembra Macaxeira. Primeiro ele comprou uma terra dos fundos. Depois comprou a da direita. Já em 2002, começou a derrubar o mato que havia ao redor. Ele prometia àqueles de quem comprava terrenos que geraria emprego na região. Pouco a pouco, Macaxeira se viu cercado. A tranquilidade prometida não vingou. Os empregos, tampouco. Quando muito na fase de derrubada da mata. Nessa época, era o barulho que mais transtornos trazia. Em seguida, a soja. “Aí comecei a passar muito atrito”, relembra.
Seu Macaxeira observava a reação da aplicação do veneno em seus filhos, “irritava os olhos, irritava a garganta. Era febre diária, era dor na cabeça”. O uso de agrotóxicos pelo vizinho começou a dificultar sua própria atividade profissional. “Eu que vivia da agricultura familiar, mais da colheita do mamão, da macaxeira, começou a não dar mais. O veneno não deixou.” As plantas passaram a não dar frutos. Ou quando davam, já não eram frutos tão saudáveis como antes. As folhas murchavam antes de florescer. A saúde e o sustento de sua família estavam ameaçados.
Uma tarde de 2007, no início do verão amazônico, Macaxeira viu mais uma vez o vizinho iniciando a aplicação do veneno. Eram seis horas da tarde e as crianças estavam em casa. Preocupado, foi conversar sobre a situação com ele:
– Eu embarguei. Disse que ele não colocasse mais veneno, senão eu ia dar parte dele – relembra o agricultor.
Alguns dias depois, o vizinho veio lhe fazer uma visita, também no fim da tarde. Pediu licença, e disse:
– Seu Antônio, hoje eu vim para fazer dois negócios: ou o senhor compra a minha área ou eu compro a sua.
Sitiado por um terreno maior que o seu, ambientalmente degradado pela derrubada da floresta e acúmulo de veneno, e com suas economias debilitadas pela atividade do vizinho, Macaxeira não tinha como comprar a área. “Nós não tivemos mais como ficar no terreno na época que eu morava. Ninguém mais conseguiu sobreviver respirando soja, com aquele veneno. E eu fui obrigado a vender.”
Macaxeira se mudou para outro local da mesma Santos da Boa Fé, o ramal do Jacaré, onde fizemos esta entrevista. A partir de 2005 a soja tomou conta da comunidade e de outras tantas na região conhecida como Planalto Santareno, composta pelos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos. “O veneno obriga a pessoa a entregar o seu lote. Não é mais o preço”, resume.
Comunidade de Boa Esperança
“Há anos as araras e os macacos vinham aqui comer as frutinhas das árvores. Vinham na porta de casa. De repente, desapareceram”, comenta, com carinho, Sônia Maria Guimarães Sena da Comunidade de Boa Esperança. Vive junto com seu pai, Raimundo Alves Guimarães, o Seu Curica. O quintal das duas casas termina onde se inicia o campo de monocultura. Ambos estão cercados. A diferença entre os terrenos salta aos olhos: do lado de cá da cerca, nos arredores da casa, uma proliferação de espécies, como bananeiras, cajueiros, limoeiros, macaxeiras e outras tantas árvores frutíferas. Do outro lado, soja, milho e glifosato – o veneno utilizado para conter pragas.
– Algumas pessoas que tentaram resistir não conseguiram. Eles [os sojeiros] foram comprando aqui e ali, e aqueles que ficaram no meio foram obrigados a vender, porque não tem condições. O veneno mata tudo, leva tudo, o veneno sai fora pros sítio tudo. Por isso venderam tudo. Não tinham mais condições de plantar – relata seu Curica.
Ele mostra um cajueiro em seu quintal. “Dão tudo sementes. Floresce, mas não nasce”. Com o avançar da idade, ele deixou de trabalhar na roça. O terreno em que trabalhava ficava próximo à Hidrelétrica de Curuá-Una. Hoje, aposentado, passa o dia tecendo malhadeiras para pesca. O trabalho é demorado, e cada rede é vendida por R$ 600.
Sua esposa faleceu em maio de 2019, alguns meses antes de nossa visita, em decorrência de um câncer de estômago. Maria Dercy Godinho é relembrada por sua família como uma lutadora. Pai e filha se emocionam ao falar dela. “Minha esposa, enquanto viva, lutou muito, para que não houvesse esse exagero de agrotóxico aqui. Mas não conseguiu.” Caminhamos pelo cemitério onde está enterrada, a poucos metros da casa onde vivia. O próprio cemitério encontra-se cercado pela vastidão plana e monocromática dos campos de grãos.
– Ela ficava agoniada com o cheiro forte que vinha. Sentia uma falta de ar, ficava sem poder respirar muito. Se trancava aí dentro. Deixava passar um pouco, para deixar sair. O problema dela era a falta de ar. Reclamava, vinha com o povo aí. Ver se eles não vendiam a terra. Trazer a gente do sindicato pra fazer palestra. Mas venderam mesmo. Não teve jeito. O dinheiro falou mais alto – reflete Curica, com o olhar perdido em algum lugar incerto.
Maria Dercy Godinho pertencia ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, assim como Seu Macaxeira. Representando os pequenos trabalhadores rurais da região, o sindicato atua na linha de frente do embate contra os impactos da soja na região.
Um dos vizinhos de Curica se recusou a conceder uma entrevista. “Eu não quero confusão, como que vou falar mal do sojeiro se eles alugam minha terra? Consigo até um pouco de glifosato”, disse. Gaúcho, alto, de olhos claros, passou a fazer contas sobre a dificuldade de dar continuidade aos negócios a que antes se dedicava, na produção farinha. Queria demonstrar, matematicamente, que o mais lucrativo e lógico para o pequeno proprietário rural é alugar sua terra para os sojeiros. A saca de farinha de mandioca, segundo ele, chega a ser vendida por R$ 80 reais no Mercado de Santarém. Com R$20 de frete que precisa pagar para percorrer os mais de 40 km que separam Boa Esperança do centro da cidade, “não dá para nada”, em suas próprias palavras. Em compensação, alugando o terreno para produção de soja, obtém um rendimento fixo, independente da produtividade. “Se tivesse cem hectares”, refletia em voz alta, enquanto fazia contas, “arrendava 70 para a produção de soja e vivia de renda.”
Com Seu Macaxeira, percorremos o Ramal da Moça, onde existia uma comunidade com o mesmo nome. “Desde 2005 que a porrada vem correndo solta em cima dos moradores”, contou, enquanto nos aproximávamos do local. Ele ansiava em nos mostrar resquícios da comunidade, casas abandonadas de moradores que tudo venderam para ir para a cidade. Para a sua surpresa, até as casas foram derrubadas. Ali, antes, viviam 75 famílias. Agora, só soja. Pudemos observar apenas um colégio e duas casas, já tomados pela vegetação rasteira, que subia pelas paredes e começava a embrulhar as construções, como um manto verde. Logo, elas também serão derrubadas.
A soja promove uma mudança nas relações entre pessoas e a terra em que vivem. Impõe uma espécie de separação e de afastamento, que implica em abandono das comunidades e ida para cidade. A monocultura de grãos parece não deixar brechas. Alterou definitivamente a paisagem, a vida e as relações sociais no Planalto Santareno.
Seu Curica lamenta: “aqui não tem esperança de ter um progresso melhor, porque aqui parou tudo. Não tem como aumentar, progredir”. Aquilo que os sojeiros chamam de desenvolvimento, para pequenos agricultores se apresenta como ruína. Existe uma sensação geral de desânimo e resignação no ar, que contrasta com o nome da comunidade: Boa Esperança. Localidade para onde muitos vieram quando se começou a abrir a mata, nos primeiros anos da década de 1930. Ali imaginava-se um futuro promissor, com a extração de pau rosa, para produção de perfume. Poucos anos depois, o nome parecia ter alguma aderência ao que se vivia. A comunidade se tornou um importante polo produtor de farinha para Santarém. “Tinha emprego demais aqui. Você não ia lá procurar serviço, eles que vinham atrás de você”, alude Curica, referindo-se a um passado distante, em nada presente na comunidade hoje. “Aí com a chegada da soja, o pessoal foi vendendo as terras, e foi acabando o emprego”.
Lago do Maíca
Ciro de Souza Brito é advogado e trabalha na Terra de Direitos, ONG que presta assessoria jurídica para comunidades rurais e quilombolas afetados pela soja na região do Planalto Santareno. “A soja não vem sozinha, como commodity. Ela traz diversos problemas. Ela vai desterritorializar, adoecer, criminalizar, ela vai marginalizar”.
O advogado articula rapidamente suas ideias, encadeado-as com clareza e explicitando a gravidade da situação vivida na região. Ele analisa a expansão da cadeia da soja na região a partir dos impactos em quem vive próximo à terra:
– Ao passo que a soja expande, ela desterritorializa as comunidades e aumenta a necessidade de escoar a soja que se está plantando. E por onde vai sair? Aqui entra a questão do Lago do Maicá. As comunidades entendem que é um criadouro de peixes, inclusive nas palavras do Dileudo, e os estudos apontam que é um santuário de peixes, no sentido de haver mais de dezoito espécies. É um lugar onde as aves vêm se alimentar dos peixes. Tem uma riqueza de biodiversidade muito grande no lago e no seu entorno.
Presidente da associação de moradores do Quilombo do Bom Jardim, Dileudo Guimarães dos Santos conhece como poucos a realidade do Lago do Maicá. Ele vive tanto os impactos da expansão da plantação de soja como da construção da infraestrutura que a exportação do grão demanda. Encontramos com ele no quilombo em plena celebração do Dia da Consciência Negra, e voltamos para a entrevista 48 horas depois. O quilombo ainda estava em clima de festa, ou melhor, de fim de festa, com as pessoas arrumando as áreas comuns e voltando à suas atividades diárias.
O Quilombo do Bom Jardim fica em um local de difícil acesso, entre o Lago do Maicá e o pé de uma serra. Para chegar até ele, vindo da rodovia Curuá-Una, é preciso embrenhar-se em ramais tomados pela soja, passar ao lado do terreno de Seu Macaxeira e descer um baixada íngreme e escorregadia. Para Dileudo, a localização do quilombo é estratégica:
– Que o povo que vinha pra cá, que vieram pra cá como escravos, se localizavam nas áreas aqui debaixo, mas tinha gente que ficava, durante o dia, na área da serra. E alguns trabalhavam também lá. Porque facilitava ter uma visão de quem chegava pela água. Então já avisava as pessoas: ‘olha, tá chegando, tal e ali’”.
No interior do Pará a história se repete de modo curioso. Ela parece inverter a célebre frase usada por historiadores. Em terras tapajônicas, a história surge primeiro como farsa, e só depois como tragédia. Justamente por conta dessa geografia estratégica, que uma vez favoreceu aqueles que fugiam da escravidão, hoje o quilombo recebe água com veneno das plantações de soja que ficam no topo da serra. Um lixão da cidade de Santarém, instaurado na parte mais alta, também traz água contaminada para eles. Apesar do avançado processo de titulação do Quilombo, grileiros avançam sobre a área dos comunitários, plantando soja, dentro do território, enquanto os quilombolas mesmo “poucos têm terra para trabalhar”, lamenta Dileudo.
Além da qualidade da água, outra de suas preocupações é com o peixe. “Aqui é água do Tapajós, a água do Amazonas é mais branquicenta. A gente percebe que essa água tem mudado um pouco de cor. E já foram encontrados peixes mortos. Achamos que é pela contaminação da água. E a gente sabe que a contaminação da água vai diminuir a quantidade de peixe.”
Dileudo teme que a construção dos portos e o fluxo de grandes embarcações possa vir a aterrar o Rio Maicá. O que implica um problema maior para a segurança alimentar dos quilombolas, haja em vista que, com o desmatamento demandado pela soja, a caça diminuiu, como explica Dileudo, “porque a caça precisa da mata mesmo, e precisa de fruta para se alimentar. Acabando com a floresta, é claro que pássaros, macaco, paca, cotia, todo tipo de caça, as árvores também, elas vão procurar viver aonde elas encontram alimentação”. Castanheiras e abacabeiras foram derrubadas, o que fragiliza ainda mais a alimentação dos quilombolas.
Enquanto isso, os projetos de expansão da soja não param. Ciro acompanha a construção da Ferro Grão, e do projeto de Hidrovia Teles Pires-Tapajós. O advogado aponta para a relação entre o desenvolvimento da infraestrutura de escoamento da soja do Centro-Oeste e o incentivo para a produção no Planalto Santareno:
– O porto da Cargill, que serve para escoar, em um primeiro momento, muito mais a produção que vinha do Mato Grosso etc., essa história do Arco Norte, para ligar o Centro-Oeste do Brasil com o Norte para ter acesso ao Oceano, ele incentivou que aqui se plantasse. E o Lago do Maicá tem um projeto para construção de seis portos, terminais de uso privado. Além de escoar a produção já existente, ele vai vir como um incentivo para os produtores locais ou de fora virem para produzir aqui.
Para Ciro, existe uma série de condições naturais favoráveis para a instalação de portos privados no Lago do Maicá: a profundidade, o fácil acesso por estrada, a ligação direta com o Rio Amazonas, em uma área de maior velocidade. Todos esses fatores, naturais e políticos, estão na origem de um forte lobby para a alteração do Plano Diretor do Município de Santarém.
“Essa região do Lago do Maicá é de uma área de preservação ambiental. Você não podia fazer nada ali. Então quando foi para mudar o Plano Diretor municipal, houve todo um ano de participação pública. Consultas. Audiências. As comunidades e movimentos sociais e demais organizações apontaram a necessidade de se permanecer essa área como uma área de preservação. E foi o texto passando assim. Então a gente achava que no final, quando fosse aprovada a lei municipal que ia aprovar o plano diretor, ficasse como uma área de preservação”, conta Círio.
Ele prossegue: “então houve um lobby por trás, e em dezembro, quando todo mundo estava feliz, a Câmara e a prefeitura aprovaram uma redação que na verdade aprovava essa área como expansão portuária”. Outra alteração no plano diretor diz respeito à soja, diretamente. Praticamente todas as áreas que não sejam áreas de preservação ambiental foram transformadas potencialmente em áreas onde a monocultura poderá se desenvolver.
Por não terem tido seus protocolos de consulta respeitados, os quilombolas entraram na justiça, que suspendeu temporariamente a construção dos portos de soja. Porém, outro projeto, um terminal portuário de combustível, com as devidas autorizações municipais e estaduais, está sendo construído, e com ele, toda a infraestrutura logística: “o porto está avançando, está se consolidando, estão terminando de construir”, afirma Ciro.
A farsa
De carro, fizemos o percurso entre as comunidades rurais que beiram a Rodovia Curuá-Uná. Seu Macaxeira nos acompanhava, explicando como era a região antes da chegada da soja, comparando com como está hoje.
– A farsa das comunidades! – exclamou, do banco de trás.
– Como assim Seu Macaxeira? – perguntei.
– Só tem umas casinhas aí. Na beira da estrada. E nada mais. Aqui antes era tudo comunidade.
Alguns quilômetros à frente, ele retomava o raciocínio: “a farsa que deixaram”, continuava Macaxeira, apontando para as estreitas faixas de floresta remanescentes, cercadas pelos descampados de soja, “só umas arvorezinhas aí”. E então arrematou: “por trás é tudo soja”.
Ele conta que todas essas pessoas venderam seus terrenos por quantias ínfimas. Pessoas humildes, que viviam do que plantavam, ficaram iludidas com R$ 10 mil, R$ 15 mil oferecidos pelos seus terrenos. Acharam que ganhariam a vida na cidade e hoje passam penúria. Em um ou dois anos, o dinheiro se acabou. Diferente da vida nas comunidades, na cidade, tudo custa. Poucos momentos depois, resumiu: “vivemos a era do barão do café, agora são os barões da soja”.
Manoel Edivaldo Santos Matos é o Peixe. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém. Ele narra a chegada da soja na região de Santarém. Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o prefeito da cidade convidou produtores de soja de outras regiões do Brasil, especialmente do Mato Grosso, para fazerem uma experiência. Um teste, em um hectare de terra. Na área era plantado arroz, feijão, frutas, macaxeira. “E deu bem, a soja deu porreta na área aqui.”
– Os produtores do Mato Grosso vieram em peso. Foi até criado um consórcio imobiliário. Os caras vendiam as terras no mapa pro sojeiro. Nessa vinda deles, eles partiram para compra de terra – conta Peixe.
O agricultor ingressou na diretoria do sindicato em julho de 2002, momento em que se iniciava a venda de terras para os sojeiros. Em outubro daquele mesmo ano, fizeram um levantamento rápido para entender o impacto da nova situação: “seiscentos agricultores já haviam vendido suas terras”. Foi aí que iniciaram a primeira campanha “Não abra mão da sua terra”: “deu uma freadainha, mas muito pouco, porque o lobby para comprar a terra era muito grande”, lamenta Peixe.
Em seguida veio o porto da Cargill. A então presidente do Sindicato, Dona Ivete Bastos, foi para Europa denunciar o que estava acontecendo na região, mostrar aos compradores de soja europeus o impacto da monocultura na região: “nesta época nem se falava tanto no impacto do veneno. Era a expulsão dos agricultores. Era igarapés sendo soterrados pela derrubada”, diz Peixe. A Cargill, que segundo Peixe não tinha feito estudo de impacto ambiental para instalação do porto, teve então de se adequar.
Foi neste contexto que teve início a negociação para a moratória da soja. Para Peixe, por uma pressão da cadeia de fast-food McDonalds, que não queria comprar soja para alimentar seus perus de áreas desmatadas. A moratória foi um acordo que envolveu produtores, consumidores e organizações ambientalistas.
– Era o acordo de que a Europa só ia comprar soja de área que fosse legalizada, que não tivesse expulsão de agricultor, que não tivesse impacto ambiental, como os igarapés etc., e que não fosse derrubada mais nenhuma árvore de floresta primária para plantar soja, só em áreas alteradas ou degradadas, como eles dizem.
Mas isso depois descumpriram, e a coisa avançou.
O sindicalista mostra-se cético em relação às promessas do setor de agronegócios, de que portos, ferrovias e rodovias melhorarão a situação do município:
– Essa história não vale mais. Porque a gente sabe que onde existe isso, tem aqueles que se dão bem, e muito bem. Mas a maioria da população é afetada negativamente: ou seja, aumenta a pobreza, aumenta a miséria, aumenta a fome, a insegurança pública, a violência aumenta. Concentra renda, concentra terra e aumenta os impactos negativos na área social. Principalmente na área da saúde
Peixe cita de cabeça uma fala do médico santareno, o neurologista Erik Jennings sobre o futuro que se vislumbra para a saúde da população da região: uma população doente, pela ingestão de peixe contaminado de mercúrio e pela exposição ao agrotóxico. Em abril de 2019 o médico participou de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília. Lá, fez uma apresentação para deputados e indígenas sobre o impacto do mercúrio no Tapajós: “tenho uma tese de que o homem amazônico está mais doente e mais ameaçado que a floresta”.
Desenvolvimento
Sérgio Schwade é diretor de agricultura do Sindicato Rural de Santarém – entidade representativa da agroindústria do Planalto Santareno. Engenheiro agrícola e proprietário rural, sua visão difere do ponto de vista dos pequenos agricultores que se sentem afetados pela soja.
Conversamos na sede do sindicato, onde ele expôs a sua visão sobre a importância do agronegócio para o desenvolvimento da região. Segundo Sérgio, a área utilizada para produção de grãos na região do Planalto Santareno é de 75 mil hectares compartilhada por 230 produtores. O que dá em média propriedades de 326 hectares: “no setor do grão, é considerada propriedade pequena. É uma agricultura familiar praticamente”. Ele vislumbra a possibilidade de expansão da área produtiva na região, e da intensificação – ou seja, uma produção com mais tecnologia para aumentar a produtividade local sem desmatar outras áreas: “a gente tem as áreas antropizadas. A gente obedece a moratória da soja. Então quando é feito algum avanço, alguma limpeza, essa área tem que estar enquadrada. Que é para fazer a parte comercial de forma legal. Tem muita área sim, e a gente pode expandir sem problema nenhum”.
Comentamos com Sérgio que alguns produtores rurais tradicionais da região reclamavam da falta de emprego, que as promessas de empregabilidade do setor da soja não teriam vingado. Sua resposta, aponta para outro caminho:
– Aqui tem terra para todos. Tem mais de 700 mil hectares de mata antropizada. Hoje, agricultura de grãos só usa 10% disso. Então tem terra para todos trabalharem. Se ele vender o sítio aqui, ele vem para a cidade, coloca seu negócio na cidade. Se ele vender o sítio, ele foi no outro sítio de mato, com terra mais fértil, porque a dele estava exaurida, o que é um processo natural. E tem a sua terra. O agricultor familiar que quer ficar na atividade continua na atividade. Agora nem sempre ele fica, porque a idade vai chegando, e se ele não tiver sucessores, realmente, eles vão partir para a cidade, para estudar, e com certeza: tendo interesse, tem espaço. Agora que de treze diminui para três ou seis, isso é normal – argumenta Sérgio.
Ele acredita também que a infraestrutura vá gerar maior produtividade, e expandir as possibilidades de negócios na região: “a infraestrutura, quando eu falo, não somente para o setor de grãos, mas para toda a cadeia, do setor agropecuário. Grãos, carnes, a piscicultura. Porque uma vez que você tem uma infraestrutura portuária, você consegue verticalizar o produto aqui. Verticaliza o setor produtivo: você pode passar de proteína vegetal, converter em proteína animal, e aumentar ainda mais a sua renda”.
Poucas semanas antes de nossa conversa, a Agência Espacial Norte Americana (Nasa) divulgou um estudo com repercussão internacional relacionando a seca na Amazônia com a atividade humana: “nos últimos vinte anos, a atmosfera sobre a Floresta Amazônica tem secado, aumentando a demanda por água e deixando ecossistemas mais vulneráveis a fogos e secas. Também mostra que o aumento na seca é primeiramente o resultado de atividades humanas”. Ainda de acordo com o estudo, “a seca mais significante e sistemática da atmosfera é na região sudeste, onde a maior parte do desmatamento e expansão agrícola está acontecendo”. A região sudeste da Amazônia é onde se localiza, precisamente, o Planalto Santareno.
Citando o estudo, perguntamos a Sérgio se o setor produtivo da soja receia que a seca possa afetar a produtividade de grãos na região amazônica. “A gente não concorda com isso. Nós tivemos, na estação meteorológica em Belterra, do Inpe, em 1967 a [19]97 com 1903 mm. E hoje a gente passa, de 2000 mm. Vários anos que passou de 2000 mm de chuva. Inclusive as chuvas antecipando o período entre seco.” Para Sérgio, “esse microclima, essa situação, não é aqui”
Já quanto ao veneno, sua opinião é de que pode haver convívio, com as devidas negociações entre as partes:
– Os produtores rurais daqui compram o seu produto, com receituário, onde diz lá que você precisa usar X MLs por hectares. Até porque, se a gente aplicar mais do que isso, a gente tem prejuízo. E é prejudicial. Como um remédio também: se a gente dobrar, triplicar a dose de um remédio, vira veneno. Então, a gente tem todo esse cuidado para não ultrapassar. Agora, quando a gente faz esse tratamento manualmente, muitas vezes a gente não consegue controlar, e acaba dobrando a dose. Equipamentos hoje fazem a leitura, e colocam a dose mais precisa, mais correta. Tem que ter toda uma orientação.
Comentamos com ele o caso do Seu Curica e de seu cajueiro, afetado pelo veneno. Perguntamos se existe algum tipo de acompanhamento do sindicato. Sérgio respondeu que não cabe ao sindicato fazer a fiscalização:
– A gente não é fiscal para fiscalizar tudo, e não se sabe o que todos os produtores possam estar no momento aplicando. Então a gente não sabe o que acontece. Precisa ouvir os dois lados, e os vizinhos terem um entendimento também: quando um tem uma cultura, não aplicar determinado produto, ou vice-versa. Tendo esse diálogo, o momento de floração de um cajueiro, evitar determinada aplicação. Acredito que possa ter um entendimento, e todos conseguirem conviver no meio.
Escola e veneno
Chegamos na escola Vitalina Motta, no município de Belterra, pela tarde. As crianças estavam em pleno horário de aula, e um trator vermelho no campo de soja defronte às instalações escolares trabalhava livremente. As professoras e coordenadoras pedagógicas, quase todas mulheres, tinham vontade de falar sobre a situação, mas também receio. Mais de uma delas pediu para gravar apenas a voz, sob anonimato, relatando a tensa convivência diária entre professoras, alunos e veneno. Termos que não deveriam constar na mesma frase.
Foi Heloíse Rocha, professora indígena, quem resolveu dar uma entrevista completa. Ela trabalha há cinco anos na região do Trevo de Belterra: durante três, foi professora em uma escola vizinha, também rodeada pela soja, e há dois está na Vitalina Motta. Ela conta que nunca foi feita uma negociação com os sojeiros, para evitar a borrifação em horário de aula das crianças. “Não houve negociação. Nenhuma gestão da escola fez essa negociação. Não que faltassem reclamações dos professores e funcionários. Eu oficialmente pedi: ‘nós temos que fazer alguma coisa. É necessário que a gente proteja as crianças, e nos proteja’.”
A professora relata que a aplicação é feita a qualquer hora do dia, e sem nenhum aviso. Uma das dificuldades é conter a curiosidade dos alunos. Com a proximidade dos tratores, muitos ficam espiando, “curiosidade de criança, expondo-se frontalmente à aplicação”, enquanto as professoras tentam retirá-los. Existe também receio quanto à possível contaminação da água da escola, que é de poço artesiano e passa pelo filtro. “A gente sabe que o agrotóxico vai pro lençol freático.” Entretanto, inexistem estudos sobre a qualidade da água. A falta dos estudos, aliás, é um dos problemas maiores, na relação da população do Planalto Santareno com o veneno. Simplesmente se desconhece o impacto.
Heloíse desabafa: “a gente se sente refém na escola”. Ela e os funcionários parecem ter poucas dúvidas quanto aos perigos que correm: “é um consenso entre todos os funcionários que trabalham aqui. Que a gente está sendo contaminado. A gente pode não sentir o reflexo agora. Só algumas pessoas, que são mais sensíveis, que têm a imunidade mais baixa. Mas a gente, aos poucos, está sendo envenenado”.
A Secretaria Municipal de Educação de Belterra foi procurada pela reportagem para falar da exposição de alunos a agrotóxicos, mas não respondeu nossas perguntas.
Kalysta de Oliveira Resende é médica oncologista e hematologista, responsável técnica tanto pelo serviço de Oncologia do Hospital Regional do Baixo Amazonas como da Clínica Oncológica do Brasil, ambos na cidade de Santarém, onde pudemos conversar. Ela trabalha com prevenção secundária no tratamento e detecção precoce do câncer. Por esses motivos, a médica é chamada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém para ministrar palestras sobre os cuidados e perigos na manipulação e exposição aos agrotóxicos.
Embora desconheça a existência algum estudo específico sobre a região de Santarém, ela é categórica em afirmar a correlação presente na literatura médica especializada sobre exposição a agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer: “podem ser todos os tipos de câncer, mas a gente sabe que os cânceres do sistema linfo hematopoiético, principalmente as leucemias, os linfomas e também os tumores do sistema nervoso central”. Ela continua: “existem ainda estudos que correlacionam a exposição a agrotóxicos pela mãe, e a criança já com maior predisposição ao desenvolvimento de carcinogênese”.
Isso não significa que todos aqueles que tiveram contato com agrotóxicos desenvolvem algum tipo de câncer. Como explica a médica: “ninguém está dizendo que todos os pacientes expostos a agrotóxicos vão desenvolver câncer. Até porque o processo de carcinogênese é longo. Envolve mutações genéticas. Mas é sabido que a exposição aos agrotóxicos pode ser um fator de predisposição”. Ela afirma também que, além do câncer, existem outras implicações para a saúde. A curto prazo, são implicações agudas, normalmente reações alérgicas como tosse, espirros e vermelhidão nos olhos; mas podem incluir alterações neurológicas e pulmonares. Na exposição a longo prazo, além do câncer, estão relacionados distúrbios endócrinos e aumento no índice de infertilidade.
Kalysta explica que no câncer 80% dos casos são fatores ambientais, e que a exposição ao agrotóxico é modificável. Por isso, a médica coloca a sua expectativa na prevenção e educação, e enumera medidas que considera positivas na prevenção do desenvolvimento do câncer em sua relação com o agrotóxico, com o “incentivo à agricultura orgânica, incentivo à agricultura familiar, incentivo à busca de tecnologias e utilização de outras técnicas que não o agrotóxico, realmente, a gente pode modificar o curso da história”.
Para que o tom algo otimista da aposta da doutora Kalysta se concretize, muito precisa mudar.
Efeitos na Floresta
Heloíse Rocha é taxativa ao afirmar que a soja tomou conta de Belterra. Não apenas da área rural, mas também da urbana. As imagens de drone feitas por nós não indica outra coisa. A soja chega no limite da Floresta Nacional do Tapajós, a Flona – onde, por lei, não se pode mais derrubar.
Remerson Castro Almeida é morador da comunidade de Piquiatuba, localizada no interior da Flona. A comunidade fica às margens do Rio Tapajós. Na Flona existem quinze comunidades ribeirinhas e três aldeias de indígenas Munduruku: Bragança, Marituba e Takuara. Separa-os dos campos de soja cerca de 50 km de mata densa, onde a população local sai para caçar e não raro topam com rastros de onça. Mesmo assim, os impactos da soja se fazem sentir. “Insetos que sequer a gente saberia que existiria” passaram a aparecer na comunidade, provavelmente fugindo do veneno. Em novembro, Piquiatuba celebra a Festa do Açaí. Em 2019, os ensaios tiverem de ser interrompidos porque as lâmpadas atraíram insetos nunca antes vistos na comunidade.
“Se aquela mata estivesse de pé, aquela quantidade de insetos não viria para cá”, reflete Remerson. Outra mudança sentida pelos moradores é o aumento do calor, que dificulta a permanência no roçado debaixo de sol: “antigamente, se a gente saísse às 6h da manhã, a gente aguentaria até 11h30, 12hs no roçado. Hoje em dia, o máximo que a gente aguenta é 10hs da manhã. Até isso dá um atraso na nossa produção, como agricultores familiares”.
A Floresta Nacional do Tapajós é uma Unidade de Conservação Ambiental de 527.319 hectares, que abrange os municípios de Belterra, Aveiro, Placas e Rurópolis. Foi criada através de Decreto n° 73.684, de 19 de fevereiro de 1974. Na época houve uma grande mobilização por parte dos moradores, pois o governo militar queria uma floresta sem pessoas, reproduzindo o imaginário sexista de uma floresta virgem. Mas os moradores recusaram-se a sair e então teve início uma luta pela permanência, da qual muitos dos mais velhos se lembram.
Apesar disso, Remerson relata uma insegurança quanto à continuidade das comunidades na Flona. O Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (o CCDRU), estabelecido em 2010, é como o nome diz, uma concessão, “um empréstimo”, nas palavras de Remerson. “O que será de nós quando terminar essa concessão? O que será de nós, caso o governo queira fazer mudanças nas leis?”, reflete ele.
O temor aumentou quando a gestão do presidente Jair Bolsonaro apresentou uma lista de 67 unidades de conservação a serem reduzidas ou eliminadas. Entre elas, consta a Flona do Tapajós. A justificativa, segundo o governo, é garantir segurança jurídica a empreendimentos do governo, tais quais obras de infraestrutura, como estradas federais, portos, ferrovias e aeroportos. Procurado pela reportagem, o ICMbio sequer respondeu às perguntas enviadas.
“Para a gente que vive hoje aqui, que vive da sustentabilidade, que somos um povo extrativista, povos coletores, que vivemos aqui. A gente fica em dúvida. Será que vão permanecer leis que vão nos beneficiar, ou serão feitas leis para beneficiar os grandes empresários. Praticamente, é uma luta do povo pobre com quem tem mais dinheiro”, sintetiza Remerson. O receio é que tudo possa ser transformado em soja, e que o destino de Boa Esperança se replique em Piquiatuba, e nas demais comunidades da floresta.
Para onde seguir
Seu Macaxeira saiu daquela área em que se encontrava, em Santos da Boa Fé, na qual foi cercado pelo vizinho, no início dos anos 2000. Ele conta que quando se mudou para o ramal do Jacaré, o local era só mato: “Isso aqui não tinha nada”. Ele e seus filhos, já crescidos, estão novamente cercados. Sua propriedade é similar àquelas que vimos na região: onde termina seu quintal, começa o campo de monocultura de grãos. Sem muro, sem nenhum tipo de separação. Ironicamente, a única proteção de Seu Macaxeira são as suas próprias macaxeiras, que beiram o campo de grãos.
“É sufocante”, desabafa. Entusiasmado, ainda vislumbra uma alternativa: “o único contraponto à monocultura é a gente trabalhar organicamente. Ter uma produção orgânica em larga escala”. Entretanto, considera que o atual governo de Jair Bolsonaro faz de tudo para inviabilizar a agricultura familiar e orgânica.
Ele mesmo já não pode garantir que a sua própria produção esteja isenta de veneno. “O vento trás.” Outros agricultores comentam que, com o veneno sendo utilizado nos campos de monocultura, eles foram obrigados a utilizar venenos em suas próprias plantações. Do contrário, elas não vingam. Veneno pede mais veneno.
Morador da região há 28 anos, Seu Macaxeira não hesita: “o objetivo deles hoje é acabar a comunidade”. A história de Seu Antônio Macaxeira é a história de pessoas sujeitas à fria lei da concorrência do mercado. Existem frequentes acusações de grilagem na região – como denuncia Dileudo, do Quilombo Bom Jardim. Mas em muitos outros casos, o processo de compra de terras é feito de acordo com a legislação vigente, assim como a aplicação do veneno. Não incorrer em ilegalismos, porém, não significa, que este não seja um processo violento. A cada metro comprado, a cada terreno com mata que dá espaço à monocultura de grãos, a cada borrifada de veneno, os pequenos agricultores rurais se sentem cercados. Fogem para a cidade. Aos poucos, são desterrados. Ou ficam como os cajueiros de
Seu Curica, apáticos, sem dar fruto; fora de lugar na terra a que pertencem.
“E eu agora vou pra onde? Eu vou conseguir terreno aonde? Pensei na BR-163, mas não tem pra onde. Pensei na Curuá-una, não tem pra onde. Pensei no Lago Grande, mas lá também o agronegócio chegou, e não tem pra onde.” Na primeira vez que a soja o encurralou, Seu Macaxeira tinha para onde ir. Conseguiu um terreno na mesma comunidade, em um ramal coberto pela mata. Agora, não vislumbra saída alguma. No interior do Pará, de fato, a história parece se repetir: primeiro como farsa, depois como tragédia.