Nascida no município de Marabá (PA) Claudelice Silva dos Santos, 41, foi obrigada a deixar seu lugar em 2011. Na manhã do dia 24 de maio daquele ano, o irmão, José Cláudio Ribeiro da Silva, e a cunhada, Maria Espírito Santo – ambos defensores da floresta – foram surpreendidos por homens armados e encapuzados enquanto retornavam para o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), em Nova Ipixuna, sudeste do Pará.
Naquele dia, foram alvejados com vários tiros de escopeta e revólver calibre 38. De acordo com a nota da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da época, morreram no local. Os pistoleiros cortaram uma orelha de José Claudio e levaram como prova do crime.
Em 2019, residindo em Santarém (PA), um convite para integrar a primeira turma de Direito da Terra por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) de Marabá mudou completamente as rotas de Claudelice. Mesmo diante da insegurança e da tragédia familiar, retornou à cidade de origem para honrar e lutar pela memória do irmão.
“Não se tratava apenas da dor de perder o Zé e a Maria; era [a chance] de lutar por justiça; por todos os outros e outras que vieram antes e perderam suas vidas; era uma questão de honra mesmo. Tratava-se de uma dívida que o Estado tem conosco e, tratava-se de direitos,. Temos essa dor marcada em nossas mentes e corações. Entrar para o curso não foi sacrifício, foi honrar o legado”, relembra a ativista ambiental.
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Em 2021, Claudelice tornou-se uma das primeiras Bacharéis em Direito da Terra da Amazônia. “Era mais do que um curso de graduação: era uma construção coletiva, de muitas mãos; muitas pessoas morreram durante esse processo de construção. Em honra a essas vidas que foram perdidas e busca por direitos”, relembra.
Marabá: terra sem direitos
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Marabá é um dos municípios mais populosos do Pará, com mais de 280 mil habitantes . O município se destaca também pelos conflitos e disputas de terras envolvendo comunidades tradicionais, extrativistas, agricultores e outras populações e segmentos que buscam pela legalização de suas propriedades e atividades.
O território defendido por Claudelice – onde o casal José Cláudio e Maria foram cruelmente assassinados – é uma terra devoluta, isto é, terras públicas sem destinação pelo Poder Público. Inicialmente ocupada por seu falecido avô, agricultor vindo do Maranhão na década de 1960, posteriormente habitada pelo casal a partir da década de 1980.
“Historicamente, a terra “foi dada” às famílias oligárquicas, sendo arrendada às famílias ricas que detinham o poder sobre os castanhais daqui. Meu pai e outras pessoas trabalhavam na região como empregados dos patrões. Essas terras eram do patrão, conforme a narrativa em que diziam ser donos das terras, mas eram apenas exploradores dos castanhais e castanheiros”, explica Claudelice.
De acordo com a ativista ambiental, parte do território pertencia à União, enquanto a outra parte era do estado do Pará. As famílias com controle sobre os castanhais recebiam as concessões de terra para usufruto dos castanhais, agindo como se fossem proprietárias.
Uma vez que as terras eram devolutas, os moradores, incluindo seu irmão, começaram a reivindicar uma porção dessas terras. “Não se trata apenas da terra, mas sim de toda uma história das famílias que habitam essa região há décadas, não como donos, mas como empregados dos patrões, os supostos donos dos castanhais”.
Mesmo sendo alvos de constantes emboscadas e difamações promovidas por políticos, empresários e fazendeiros com interesses na região, José e Maria se tornaram grandes líderes comunitários realizando importantes mobilizações. Suas ações incluíram a organização de mutirões para emissão de documentos e a elaboração de planos de manejo, tudo por meio de sistemas de formação comunitária, visando disseminar as informações sociais.
Essa intensa atividade mobilizadora provocou uma transformação na comunidade, proporcionando uma nova percepção de seus direitos e deveres como cidadãos. As assembleias, que chegavam a reunir de 200 a 300 pessoas, testemunhavam a dedicação de muitos, que percorriam longas distâncias a pé, por horas, para participar de atividades que se estendiam por dois a três dias.
José e Cláudio e Maria entendendo a necessidade de estabelecer uma economia sustentável para o território, decidiram criar um modelo institucional de reserva inspirados pela experiência de Chico Mendes, no Acre, conhecido como Reservas PAE (Projeto Agro Extrativista). Seu objetivo era impulsionar setores como a produção de castanha, do cupuaçu e outras culturas provenientes da agricultura familiar, além da formação de uma cooperativa.
Claudelice destaca que havia fazendas de maiores extensões que não cumpriam suas funções sociais perante ao uso da terra. Estas foram submetidas às regras da regularização, seja pela possibilidade de venda de benfeitorias para o Estado ou para fins da reforma agrária (por se tratar de terras sem título de posse), ou pela seção de espaços excedentes para o assentamento de agricultores familiares.
Grigalem de terra e ameaças
No processo de regularização, muitas denúncias de práticas fraudulentas como a grilagem de terra, e omissão por parte do Estado vieram à tona. Além disso, a região testemunhou desmatamentos e outros crimes ambientais, denunciados por José Cláudio e Maria.
O casal tornou-se alvo de constantes ameaças por parte dos chamados “consórcios da morte”, grupos associados à extração ilegal de madeira, grilagem de terras e crimes ambientais. Eram entidades contrárias à conquista social, à reforma agrária e ao assentamento agroextravista.
“Eu defendo a floresta em pé e os seus habitantes em pé [… ], mas devido a esse meu trabalho eu sou ameaçado de morte pelos empresários da madeira”, disse José Cláudio durante uma entrevista.
Todas as denúncias realizadas pelo casal foram documentadas e registradas em órgãos competentes como DECA (Delegacia Especializada em Conflitos Agrários), Ministério Público Federal, INCRA, e IBAMA.
Nos anos 2000, além das denúncias de violação dos direitos humanos e da terra, o casal passou a documentar e registrar as ameaças enfrentadas.
Claudelice compartilha que, em vida, José e Maria nunca tiveram proteção adequada. A violência tornou-se tão intrínseca em suas vidas que Maria desenvolveu esquizofrenia, vendo pistoleiros em todos os cantos. A pressão constante fez com que o casal se tornasse mais cauteloso em suas ações.
“Passou a ver pistoleiros em todos os cantos. Era muita pressão. Eles passarão a ficar cada vez mais juntos. A fazerem tudo com muito cuidado”
Apesar de todas as denúncias, Claudelice alega que o Estado permaneceu omisso:
O Estado brasileiro foi omisso antes, durante e aindaé, pois o mandante continua solto. A justiça nunca existiu para o José e a Maria, nem quando as mortes poderiam ter sido evitadas e nem depois do assassinato. O Estado é corresponsável pela morte dos dois. O Estado apertou o gatilho como o massacre de Eldorado, assim como o massacre de Pau Darco, da Ponte do Rio Tocantins, e diversos outros
Culpadospelaprópriamorte
Em artigo escrito em 2021, Claudelice revela que mesmo após assassinato, de seu irmão e cunhada, José e Maria foram responsabilizados pela própria morte. A primeira sentença, afirma que “eles contribuíram para a própria morte”.
“Mas travamos uma batalha judicial, e em 2014, a sentença que responsabilizava Zé Cláudio e Maria e absolveu o mandante, José Rodrigues, foi anulada. Na luta, ninguém cansa […] É histórico dessa região a impunidade. E você tem que lutar contra a impunidade
O espaço de disputa foi desocupado temporariamente e depois retomado pela família de Claudelice, que se espalhou por todas as regiões diante da violência no período. Mas nunca deixaram de lutar pela impunidade e por todas as omissões do Estado.
“Como se não bastasse a brutalidade dos assassinatos, os corpos permaneceram no local por mais de oito horas, expostos, até que fossem periciados e removidos do local. Durante o velório, o recebimento das diversas cartas de pêsames e solidariedade de pessoas, autoridades e organizações que poderiam ter ajudado o casal enquanto ainda vivos e nada fizeram aumentavam ainda mais a sensação de indignação, não havia mais nada o que fazer pela manutenção do bem maior, a vida”, contou Claudelice em mesmo artigo de 2021.
As investigações sob o inquérito policial 201/2011.000046-0 concluiu que o crime foi “praticado mediante emboscada no momento em que as vítimas transpunham uma ponte de madeira localizada na vicinal principal”, aponta artigo de Claudelice.
Em 2016, um novo julgamento foi realizado à revelia, e o mandante do crime foi condenado a 60 anos de prisão, tornando-se, foragido da região.
Nossa reportagem procurou a Polícia Civil do Estado do Pará para entender o estágio atual do caso e, em nota, respondeu: “A Polícia Civil do Pará informa que o inquérito policial que investiga o caso foi concluído dentro do prazo legal e remetido à Justiça”.
Luta por memóriae justiça
Fazer o curso de Direito permitiu a Claudelice entender que a maioria dos dispositivos legais eram utilizados contra ela mesma, e assim entender a linguagem jurídica e utilizá-la em causas ambientais e sociais para proteger as pessoas.
Segundo a ativista, as mortes de Zé Cláudio e Maria e das mais de centenas de pessoas envolvidas nessas lutas desiguais por direitos poderiam ter sido evitadas por meio de dispositivos legais, sistemas de proteção, ou pelo simples trabalho do Estado.
“Hoje, estar à frente do Instituto Zé Cláudio e Maria significa utilizar toda esta engenharia jurídica e ferramentas em prol dos direitos humanos, e dos direitos da floresta, protegendo e dando apoio e suporte às pessoas ameaçadas de morte que estão em situações extremas, como O Zé e a Maria já estiveram; um desafio de pensar estes dispositivos em nosso favor”, diz Claudelice.
Antes do curso de Direito da Terra havia apenas um advogado popular na região de Marabá, José Afonso Batista, da Comissão Pastoral da Terra, também oriundo de família de assentados vindos de Minas Gerais. Atuava sozinho , já que dois que atuavam no local foram assassinados: Gabriel Sales Pimenta, em 1982, aos 20 anos de idade, e Paulo Fontelle, em 1987, aos 38 anos, na região metropolitana de Belém
Claudelice afirma que há rumores de que a cabeça de Batista vale R$80 mil. “Por mais absurdo que pareça, há uma lista com nomes e valores e pessoas marcadas para morrer”.
Atualmente, depois da formação da primeira turma, com 47 bacharéis na região amazônica, dois formados estão advogando com a Comissão Pastoral da Terra. A outra parte atua com advocacyno apoio à rede da Pastoral, estendendo-se à região oeste, sudeste e sul do Pará.
“Agora temos uma turma de Direito da Terra em formação com a maioria de mulheres negras e combativas. Saímos de uma realidade de advogados assassinados para duas turmas formadas, porque agora tem ribeirinho, tem quilombola, e tem indígena. É um perfil mais jovem. É daqui pra cima”.