Rondônia vive atualmente uma situação crítica, com colapso do sistema de saúde e necessidade de transferência de pacientes para outras regiões do país. Mas a crise de saúde no estado não vem de agora.
Em julho do ano passado, Ivaneide Suruí recebeu o diagnóstico: estava com Covid-19. Passando mal, com tosse forte, a moradora de Porto Velho descobriu a doença em um período crítico – era o início do pico de incêndios florestais em 2020 em Rondônia. “É mais difícil porque você já respira mal por conta da própria doença, e, como Porto Velho é uma cidade que teve muita queimada mesmo, isso torna a respiração muito pior, com muito mais dificuldade”, conta.
O ano de 2020 marcou uma combinação trágica e inédita na Amazônia brasileira: queimadas e a pandemia. Em alguns estados da Amazônia Legal, os meses com mais focos de incêndio na floresta foram também os com maior número de internações por complicações respiratórias graves.
Ao todo, os nove estados da Amazônia Legal registraram mais de 28 mil internações de pessoas com quadros respiratórios agudos graves (SRAG) entre os meses de agosto e outubro, época da maioria dos focos de incêndio no bioma, que trazem consigo os efeitos da fumaça das queimadas na saúde respiratória da população.
Cerca de 63% das internações desse tipo nos estados da Amazônia foram casos confirmados de Covid e 23% não tiveram a causa definida. Entre as pessoas hospitalizadas com confirmação de Covid, 30% faleceram.
Queimadas e pandemia formaram uma grave combinação justamente em Rondônia, onde vive Ivaneide – agosto, o mês com mais internações no estado, foi o segundo com mais focos de incêndio no ano. As queimadas, que começaram a aumentar em julho, quando ela adoeceu, só foram diminuir em dezembro.
A quantidade de incêndios em 2020 foi especialmente crítica em Porto Velho, a mais afetada de todas as capitais da Amazônia: mais de dez focos por 100 km². Ivaneide, que é ativista em uma associação de defesa do povo indígena Uru-eu-wau-wau e do Parque Nacional de Pacaás Novos, conta que teve dificuldade para ser atendida no sistema de saúde quando o seu quadro de saúde se agravou e diz ter encontrado postos de saúde e pronto atendimento lotados. “Aquele monte de gente, e eu falando pra pessoa: ‘Olha, eu estou atestada de Covid, eu estou passando mal no meio dessa multidão aqui”, relembra.
Em 2020, as queimadas devastaram ainda mais a Floresta Amazônica do que em 2019. Ao todo, foram mais de 103 mil focos de incêndio, 15% a mais do que em 2019, primeiro ano da presidência de Jair Bolsonaro, que já havia registrado aumento em relação a 2018.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou mais de 11 mil focos de incêndio em Rondônia em 2020, apenas em áreas da Floresta Amazônica. Em toda a Amazônia Legal brasileira, Cujubim, um município no norte do estado com população estimada de cerca de 26 mil pessoas, foi o que mais teve focos em relação à sua área: 19 por 100 km2, de acordo com levantamento inédito da Pública – a média, considerando-se apenas os municípios que tiveram focos de queimadas, foram três por 100 km².
Além de Porto Velho e Cujubim, estão em Rondônia outros três municípios entre os 20 que mais registraram focos proporcionalmente em 2020 em toda a Amazônia: Buritis, Candeias do Jamari e Nova Mamoré.
“A questão das queimadas acontece todo ano. Então, nessa a gente tem um aumento, principalmente de crianças, mas de adultos também, que procuram o pronto atendimento no hospital com problemas respiratórios, ou agravamento do quadro respiratório que já têm. Fica agudizado, começam a ter crises”, relata Fernando da Silva Pinto, coordenador da Atenção Básica e enfermeiro plantonista do Hospital Regional de Buritis. Ele conta que a sobreposição das queimadas com a pandemia em 2020 dificultou o atendimento no hospital, com grande aumento de pacientes com sintomas respiratórios em dúvida se estavam com Covid ou sofrendo os efeitos da fumaça. “Tudo que envolve alguma coisa relacionada ao sistema respiratório a gente já tem que desconfiar de Covid”, comenta.
Covid se confunde com problemas respiratórios agravados por queimadas
No Mato Grosso e em Tocantins, um dos meses com mais internações de pessoas com problemas respiratórios graves em 2020 foi também o que mais registrou queimadas: agosto. No Pará, em agosto e setembro houve mais hospitalizações e também números elevados de focos de incêndio.
Uma das razões para essa “coincidência” é que agosto e setembro ainda marcam o período de menos chuvas na região amazônica, que tem início em maio e segue até setembro, em alguns anos, até outubro. A diminuição das chuvas facilita queimadas – muitas delas criminosas – como também agrava problemas respiratórios na população, principalmente em crianças e idosos.
“No inverno é mais difícil o poluente se dissipar da atmosfera porque tem a inversão térmica. Ele fica mais preso à atmosfera. Então, nos meses de inverno, a seca e as queimadas, por sua vez, pioram a concentração de poluentes e os problemas respiratórios”, explica Evangelina Vormittag, diretora executiva do Instituto Saúde e Sustentabilidade.
Em 2020, a pandemia trouxe uma camada a mais a esse problema público de saúde: sintomas da Covid se confundiram com problemas respiratórios agravados pelas queimadas e pelo período seco. Esse quadro, além de dificultar o diagnóstico, também complica o tratamento, sobretudo em regiões afastadas e com estrutura precária de saúde, como explica Christovam Barcellos, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz.
Ele é um dos responsáveis por uma nota que apontou que as pessoas acometidas pela fumaça das queimadas poderiam estar com o organismo mais suscetível a uma infecção viral. “A pessoa que estiver passando mal devido às queimadas vai tentar recorrer a um hospital que já está lotado por causa da Covid-19. Imagine as pessoas que tiveram exposição à fumaça, elas podem estar com o sistema respiratório muito mais sensibilizado. Isso baixa a imunidade, abre uma porta de entrada para o vírus. Pode acontecer da mesma pessoa ter Covid e inflamação devido à fumaça”, explica.
Na macrorregião de saúde de Porto Velho, onde houve essa sobreposição de meses com mais queimadas e mais internações por problemas respiratórios, metade dos hospitais teve ocupação de leitos de UTI para adultos acima de 70% por vários dias em julho e agosto. No estado, foram mais de 2,5 mil internações por complicações respiratórias graves nos três meses com mais focos de incêndio.
De acordo com o pesquisador Thiago Fonseca, da Universidade Federal do ABC (UFABC), o impacto das queimadas na saúde respiratória não é medido por uma variável específica, mas sim por um conjunto de fatores. “Trata-se de uma relação entre três processos, não diretamente observável: queimadas, poluição atmosférica e demanda por tratamento ambulatorial e hospitalar.”
Para Evangelina Vormittag, falta um monitoramento direto que associe a fumaça dos incêndios ao aumento de problemas respiratórios, o que poderia auxiliar na ação dos gestores para diminuir o impacto na população. “Se tivesse o monitoramento e ele [o gestor municipal] pudesse dizer que na cidade, devido à queimada, a concentração de poluentes é alta, ele tem que tomar alguma medida. Se não tem esse monitoramento, ele não vai tomar medida alguma, ele não vai fazer isso pelos dados do Inpe”, avalia.
Falta de estrutura hospitalar na Amazônia é gargalo para tratar Covid e problemas agravados por queimadas
A chegada da pandemia pegou despreparados os serviços de saúde em diversos municípios da Amazônia, sobretudo os da região Norte. Como a Agência Pública revelou em março do ano passado, a distribuição de leitos de UTI no Brasil é desigual, e o Norte é justamente a região com mais “desertos” – grandes áreas com número de leitos de UTI abaixo do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“As pessoas [nessas regiões] não têm um risco maior de pegar a doença, mas de morrer pela doença. Se precisarem de uma UTI, talvez não tenha leitos na região delas, porque a disponibilidade é menor”, antecipou o economista Pedro Amaral, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante de um grupo de pesquisa que analisa a distribuição espacial da oferta de serviços de saúde no Brasil.
Como explica Ana Lúcia Escobar, mestre e doutora em saúde pública pela Fiocruz e professora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), a estrutura de UTIs no estado é um exemplo dessa concentração: há leitos sobretudo na capital, Porto Velho, e na região de Cacoal, mais ao sul. “Na primeira fase da epidemia houve lotação, com pessoas aguardando vaga de UTI em vários municípios de Rondônia. A gente tinha, basicamente, serviços especializados, principalmente de UTI, na região de Cacoal, que pegava os municípios mais ao sul, centro-sul do estado; e aqui em Porto Velho, que pegava a população de centro-norte até a fronteira com a Bolívia”, relata.
Apesar de ações no início da pandemia para suprir as demandas de leitos de terapia intensiva no estado, a professora conta que Rondônia voltou a sofrer com a lotação após a primeira fase. “Quando houve a redução do número de casos, principalmente graves, a secretaria estadual [de Saúde] desativou alguns leitos de UTI e também houve a redução de pessoal que trabalhava nessas unidades. Agora estão enfrentando dificuldades para reativar esses leitos, justamente porque aquelas pessoas que eles exoneraram não estão mais disponíveis, arranjaram outros lugares para trabalhar”, conta.
Os grandes vazios com menos leitos de UTI na região Norte acabam gerando uma situação na qual a superlotação no sistema de saúde de um estado pressiona outro. Isso ocorreu recentemente em janeiro de 2021, com pacientes do Amazonas que necessitavam de leitos de UTI buscando atendimento em Rondônia. O Amazonas, palco das trágicas cenas de falta de oxigênio para pacientes, é justamente o estado com menor proporção de leitos de UTI por habitante na Amazônia. Em seguida, foi Rondônia que precisou transferir pacientes para estados de outras regiões do país.
A superlotação do sistema de saúde na região Norte nos períodos de pico da pandemia pode ter levado também à falta de atendimento de pessoas com problemas respiratórios agravados pelas queimadas, uma situação quase paradoxal, que se reflete nos dados. Em 2020, na Amazônia houve diminuição na quantidade de registros de inalação e nebulização no atendimento ambulatorial em relação ao ano anterior. “O que pode estar acontecendo: os hospitais estão superlotados pela Covid, então não conseguem internar por outro tipo de causa. É uma das possíveis interações entre Covid e queimada. Uma criança, idoso, alguém que tenha mais sensibilidade à fumaça, pode passar mal, vai para o hospital e não consegue ser internado porque o hospital está lotado com pacientes de Covid”, explica Christovam Barcellos, da Fiocruz.
Na avaliação do pesquisador, a concorrência da pandemia com os incêndios deve ter deixado muitas pessoas sem tratamento para problemas respiratórios que se agravam no período de queimadas. “Existe claramente uma competição – isso é o que a gente viu – entre Covid e outras doenças. A Covid já tinha sobrecarregado o sistema quando a fumaça de queimadas apareceu como outro problema”, pondera.
Longe de UTIs, indígenas são duplamente vulneráveis com pandemia e queimadas
A distribuição desigual de leitos de UTI e a estrutura hospitalar na Amazônia se tornaram um fator de risco a mais durante a pandemia para as populações indígenas, que vivem longe dos centros urbanos. No período de pico das queimadas, de agosto a outubro, em toda a Amazônia Legal brasileira, houve 356 internações de indígenas por terem complicações respiratórias graves, cerca de 27% de todas as hospitalizações de indígenas nessa situação em 2020: 64 indígenas durante o pico das queimadas.
A Terra Indígena (TI) Parque do Xingu, no Mato Grosso, onde vivem 16 povos, registrou 1.194 focos de incêndio entre agosto e outubro, o maior número de queimadas em todas as terras da Amazônia. Algumas das principais aldeias da TI estão a quase 200 km de distância de centros urbanos maiores, como Sinop e Sorriso.
A vulnerabilidade de populações indígenas é apontada por Ana Lúcia Escobar, da Universidade Federal de Rondônia, como um aspecto que se agravou com as queimadas. Segundo a pesquisadora, a chegada de invasores nas terras indígenas – de grileiros, por exemplo, que podem utilizar o fogo para desmatar – impede o isolamento e impulsiona a propagação do vírus. “Eles tentam fazer incursões de grilagem nas áreas de proteção, e essas populações são muito acometidas pelas queimadas”, avalia.
Em novembro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou que as queimadas e o desmatamento em meio à pandemia estavam colocando em risco os indígenas pelo risco de contaminação, mas também por prejudicar a produção e a venda de alimentos dos quais dependem. “Desde que começou a pandemia, o desmatamento vem aumentando na região, por conta das invasões às nossas terras. Ficamos à mercê dos invasores; estamos abandonados”, declarou Nilcélio Jiahui, liderança indígena e membro da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Reportagem realizada com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center.
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