“Se construírem a usina vão destruir um lugar que sempre ocupamos; vão destruir a natureza; vão destruir a água pela poluição; pela diminuição de oxigênio que a queda do Salto permitia; já na construção vão poluir a água que cria peixe para nós, a água na qual banhamos, a água que levamos para nossas casas…”. O alerta foi dado há 36 anos e continua atual. O trecho faz parte de um dos manifestos produzidos, no ano de 1983, quando 14 povos indígenas do estado do Mato Grosso (MT) uniram forças para barrar a construção da hidrelétrica Salto dos Peixes, localizada na Terra Indígena Apiaká-Kayabi na região da bacia do Juruena, um dos principais formadores do rio Tapajós, que hoje segue ameaçado por projetos hidrelétricos.
O movimento produzido pelos indígenas em Mato Grosso na década de 1980 foi pioneiro. Considerado histórico não apenas por ter barrado a usina, mas também por ter iniciado um ciclo de resistências às violações de direitos cometidas por projetos de infraestrutura. As mobilizações passaram a ser realizadas de forma coletiva entre vários povos diferentes.
Exemplo disso foi o movimento criado seis anos depois, no estado do Pará, em 1989 para interromper o projeto de uma das maiores hidrelétricas do mundo, a usina de Belo Monte, no rio Xingu, que na época tinha o nome de Kararaô. A mobilização é considerada um marco das lutas socioambientais, no Brasil, e paralisou por alguns anos Belo Monte, até a retomada e implementação do empreendimento. Após o início do funcionamento da usina, em 2016, a cidade de Altamira, no Pará, onde Belo Monte foi construída tornou-se o município mais violento do Brasil, segundo dados do Atlas da Violência 2017, e os conflitos socioambientais na região foram ampliados drasticamente.
Em Mato Grosso, as populações tradicionais da região do Juruena resistem para evitar o que aconteceu em Altamira. A luta histórica travada nos anos 80 para barrar grandes hidrelétricas continua. Hoje o projeto da usina de Castanheira, projetada para o rio Arinos, coloca em risco a sobrevivência de comunidades indígenas, aumenta a tensão dos conflitos sociais nas cidades do noroeste do Mato Grosso e ameaça a biodiversidade da região. “Assim que ela for construída, não vai ser diferente de outras usinas vai ser a mesma coisa. Prejuízo!”, adverte Luciano Kayabi liderança da aldeia Tatuí, localizada no município de Juara (MT).
Luciano esteve nas mobilizações da década de 1980. Hoje com 62 anos, ele continua na luta pela defesa da bacia do Juruena e dos direitos indígenas. “Uma vez que o governo tem ideia de fazer, ele vai fazer. Foi paralisado por algum tempo, mas o estudo ainda continua. E se retomar para fazer de novo não sei o que vai virar de nós”, reforça.
As populações indígenas locais que serão impactadas pelo empreendimento afirmam não terem sido consultadas sobre o projeto da usina de Castanheira, como garante a Convenção 169 sobre Povos Indígenas, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei no Brasil desde 2004, pelo Decreto Presidencial nº 5051.
Castanheira é um projeto que iniciou seus estudos a partir da aprovação feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) do Inventário Hidrelétrico da Bacia do rio Juruena, em 2011. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que é responsável pelo projeto e é ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME), tenta há dois anos autorização da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT) para conseguir a Licença Prévia e oferecer a usina no leilão de energia elétrica, mas antes disso acontecer a SEMA-MT precisa convocar audiências públicas, o que ainda não foi feito pois o projeto apresenta inconsistências, de acordo com o Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE/MT). Um contexto que tem impedido o avanço do licenciamento ambiental do projeto e que com o atual governo pode mudar.
O presidente Jair Bolsonaro, em pouco mais de seis meses de mandato, tem colocado em prática as promessa de campanha que afetam diretamente as políticas socioambientais e os direitos indígenas. Ações que estão sendo avaliadas por especialistas como um desmonte ambiental que favorece a prática de crimes. Ambientalistas, parlamentares, artistas e diversos grupos organizados da sociedade civil denunciam esse processo de mudanças que acontece sem a participação da população. Entre as propostas do atual governo, a flexibilização do licenciamento ambiental, que segundo declarações do presidente apenas “atrapalha” a execução de obras de infraestrutura, podem acelerar projetos como a usina de Castanheira.
Estão previstas para a Bacia do Juruena a construção de 138 hidrelétricas, entre usinas de grande, médio e pequeno porte. Castanheira pode ser a porta de entrada desses empreendimentos na região, caso venha a ser implementada. Até o momento existem 32 usinas de pequeno e médio porte em operação e outras 10 em construção. Nenhum estudo feito pela EPE prevê os impactos que todas essas hidrelétricas operando na mesma região podem causar se estiverem funcionando simultaneamente.
A Bacia do Juruena está localizada em uma área de transição da Amazônia com o Cerrado. Ambos são os biomas mais impactados por ações de desmatamento no Brasil, segundo relatório Planeta Vivo 2018 do Fundo Mundial para Natureza (WWF).
A ameaça da construção de projetos de infraestrutura na região e o avanço das áreas de desmatamento ampliam o aquecimento global, colocam em risco a biodiversidade e favorecem o etnocídio das populações locais. Hoje, o Mato Grosso consta como o estado com maior índice de área degradada e é o segundo maior em desmatamento na Amazônia, segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON) publicados em 28 de fevereiro. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foram desmatados dois campos de futebol por minuto na Amazônia, no último mês de maio, um novo recorde de desmatamento, em 2019.
O rio Arinos, onde a hidrelétrica de Castanheira pretende ser construída, já sofre impactos relacionados às monoculturas de soja e cana-de-açúcar, como apontados pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) produzido pela EPE. A região já perdeu uma parte considerável de florestas como resultado da expansão da fronteira agrícola e da extração de madeira e minérios. Mesmo com tantos impactos, o Arinos continua a ser um dos rios com maior diversidade de espécies de peixes catalogadas na região da bacia do Juruena, segundo informações do EIA.
O levantamento feito no Estudo do Componente Indígena (ECI) da usina aponta que Castanheira pode gerar impactos irreversíveis às populações indígenas da região no que se refere a segurança alimentar e destruição de territórios sagrados. Outro apontamento feito pelo ECI é de que a construção da hidrelétrica poderá impactar gravemente o território tradicional do povo Tapayuna, inviabilizando definitivamente uma futura reivindicação desse povo à terra que ocupavam historicamente.
A organização não governamental Conservação Estratégica (CSF-Brasil) elaborou um estudo, em 2018, que apontou a inviabilidade econômica e financeira do projeto da hidrelétrica de Castanheira. Segundo o levantamento, o empreendimento não vai gerar lucro para quem investir na construção. O prejuízo financeiro estimado pelo estudo é de mais de meio bilhão de reais devido aos custos relacionados a emissões de gases de efeito estufa, as perdas econômicas de áreas produtivas inundadas e a diminuição das reservas de peixes.
Para a superintendente de Estudos Econômicos, Energéticos e Ambientais da EPE, Elisângela Medeiros de Almeida, o projeto de Castanheira “não interfere diretamente em unidade de conservação e nem em terra indígena, então o cenário para essa usina seria menos conflituoso”. Mesmo que o lago do reservatório da usina não inunde as terras dos povos Apiaka, Rikbaktsa, Kaiaby, Munduruku, Tapayuna e grupos de povos isolados, a construção da barragem ficaria a 120 Km da foz do rio Arinos alterando o fluxo migratório dos peixes. Recursos importantes para a segurança alimentar e para a cultura das populações locais seriam drasticamente modificados.
De acordo com Almeida, estudos sobre os impactos prevendo os demais empreendimentos planejados para o Juruena não foram feitos porque muitas usinas previstas para a região possuem questões socioambientais “sensíveis”. “As próprias empresas que fazem esse tipo de estudo de impacto ambiental e de componente indígena, elas já verificam que essa questão é sensível e tem evitado trabalhar com esse tipo de empreendimento”.
Sobre as consultas aos povos indígenas impactados, a superintendente adjunta da EPE, Glauce Lieggio, afirmou que a empresa realizou apenas reuniões com os indígenas: “Não há um processo de consulta”. Segundo Lieggio, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) não demandou um procedimento específico sobre a consulta. “Estávamos muito preocupados sobre como levar a informação aos indígenas, por isso contratamos uma empresa que propôs plano de diálogo”.
Resistência
O contexto que envolve a política energética do Brasil apresenta um quadro grave de violações dos direitos humanos e da biodiversidade. A baixa participação social nas fases de planejamento e implementação dos empreendimentos hidrelétricos, por exemplo, agravam o caos socioambiental nos territórios impactados pelas barragens. É um cenário carente de mecanismos adequados para mitigação e compensação de impactos.
Lideranças indígenas dos povos Apiaká, Kayabi, Munduruku e Rikbaktsa, que vivem na região que poderá ser afetada pela usina Castanheira, localizada no município de Juara, realizam ações de mapeamento e monitoramento de impactos como forma de proteger seus territórios. Uma dessas ações foi uma expedição que ocorreu entre os dias 18 e 24 de outubro de 2018 e percorreu as áreas que ficariam inundadas pelo reservatório de Castanheira, caso o projeto da usina saia do papel.
Luciano Kayabi pilotou uma das três voadeiras da atividade, por cerca de 200 quilômetros pelos rios Arinos, Peixes e Juruena. Um território tradicional secular utilizado por diferentes povos indígenas e que possui valores culturais e espirituais para essas populações. “Toda essa região tem imensa importância para os nossos modos de vida. Em toda a extensão percorrida encontramos vestígios de ocupações passadas que se ligam à ocupação tradicional”, ressalta trecho da carta feita pelos indígenas ao final da atividade, que encontrou e registrou sítios arqueológicos inéditos.
Onze indígenas dos quatro povos que vivem na região participaram da atividade que teve apoio da FUNAI e da Operação Amazônia Nativa (OPAN). Um dos objetivos da expedição foi iniciar um processo de reconhecimento do valor cultural e de memória desse território junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como mecanismo de proteção da área. Os sítios arqueológicos inéditos encontrados durante a expedição estão na área que seria alagada pela usina e não constam nos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da hidrelétrica Castanheira.
“Aqui que nós andamos, passamos para caçar e pescar. E hoje a gente vê as coisas tudo diferente. Porque diferente? Desmatado. Cada vez desmatando mais perto do rio tirando a madeira”. A constatação é de Canísio Kayabi, 68, uma das lideranças mais antigas do povo Kayabi da região do Juruena.
“Pra minha comunidade o que eu enxergo é que não vai ser bom (usina Castanheira). Minha preocupação não é só com meu povo indígena. Não-indígena também vai ser prejudicado”, ressalta Canísio ao parar em um trecho do rio onde foram encontrados vestígios inéditos de povos indígenas que ocuparam a região no passado e que hoje é uma fazenda, que seria inundada pelo lago da hidrelétrica, caso ela seja construída.
“Era muita fartura de peixe e caça. Agora a gente está vendo que está ficando difícil. Água está ficando diferente cada vez está secando mais. São muitas fazendas ao redor e tem um impacto muito grande”, ressaltou Roberto Munduruku durante a expedição, que denunciou uma série de violações que já existem na região mesmo sem a chegada das grandes usinas.
“A experiência que a gente vê no Teles Pires da hidrelétrica traz uma preocupação muito grande. Estão sofrendo muitos impactos. Se construir aqui também essa usina vai trazer muitos problemas”. Roberto fala dos relatos feitos pelos seus parentes sobre os impactos sofridos pelas comunidades que vivem na região do rio Teles Pires, que junto com o Juruena, são os principais formadores da bacia do rio Tapajós.
Em 2019, o rio Teles Pires terá quatro grandes hidrelétricas funcionando simultaneamente. As usinas de Teles Pires, São Manoel, Colider e Sinop estão modificando de forma drástica a região. Mudanças na qualidade da água, mortandade de toneladas de peixes, aumento dos conflitos sociais nas cidades onde as usinas foram construídas, indenizações irregulares, são algumas das denúncias feitas pelas famílias atingidas pelas barragens e movimentos sociais e que constam em mais de uma dúzia de Ações Civis Públicas (ACPs) movidas pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual. Além das quatro hidrelétricas construídas, são planejadas para o rio Teles Pires outras três grandes usinas: UHE Foz do Apiacás; UHE Salto Apiacás e a UHE Magessi.
Ameaças
Ações de proteção territorial, como a expedição realizada pelos indígenas da região do Juruena no final de 2018, em parceria com a Funai, serão mais difíceis de acontecer a partir deste ano. Hoje a Funai opera com 10% do seu orçamento. O Decreto 9.711/2019 contingenciou ainda mais o orçamento da fundação, que já operava nos últimos anos com precariedade, reduzindo a capacidade de atuação em territórios de conflito.
“O fato de percorrer esse território dá a real dimensão da importância histórica e cultural deste território. Não vai se medir na troca de voadeiras ou de outros projetos que venham teoricamente beneficiar as comunidades que sofrem com a ausência do estado”, reforça Vitor Amaral Chefe de Direitos Sociais e Cidadania da FUNAI que acompanhou a expedição. “Essas hidrelétricas realmente não trazem o benefício que essas comunidades desejariam. O nosso grande ganho com um trabalho deste é demonstrar o quanto esse território é rico para outras gerações”, conclui Amaral.
Além do enfraquecimento da Funai, o atual governo tem tomado medidas que flexibilizam os procedimentos exigidos para o licenciamento de obras de infraestrutura, como a hidrelétrica de Castanheira. No dia 29 de fevereiro o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) publicou a Instrução Normativa nº 8, que possibilita delegar aos estados e municípios o Licenciamento de obras de grande porte. Com a nova medida, empresas poderão fazer o pedido diretamente para o órgão ambiental local, as solicitações podem incluir, entre outros, autorizações para empreendimentos em terras indígenas e áreas protegidas.
No caso do complexo de hidrelétricas no rio Teles Pires, por exemplo, o órgão ambiental do estado de Mato Grosso concedeu a licença de operação da usina Sinop em janeiro deste ano, mesmo sendo apontado como um dos piores empreendimento na Amazônia em liberação de gases de efeito estufa, segundo perícias do Ministério Público Estadual de Mato Grosso em conjunto com o cientista Philip Fearnside, que recebeu em 2007 o Prêmio Nobel da Paz com o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas.
Na carta produzida pelas lideranças indígenas na expedição eles reivindicam o direito à consulta livre, prévia e informada. “Que seja garantida a proteção ao meio ambiente e os locais de memória de nossos antepassados”, acrescentam as lideranças no documento. Em março deste ano o governo ameaçou sair da Convenção 169, que visa garantir direitos aos povos indígenas, outro ponto de tensão em casos da construção de hidrelétricas, como o projeto de Castanheira. “A importância para nós dessa expedição é de que a gente consiga frear alguma coisa e proteja o que restou”, ressalta Luciano preocupado com a degradação da região.
Esta reportagem teve apoio da Rainforest Journalism Fund da Pulitzer Center, em parceria com Proteja Amazônia.